195 Valdete Souto Severo e Lucilla Kluwe Pereira A morosidade legislativa pode ser constatada através dos relatos deixados pelo advogado abolicionista Luís Gonzaga Gama. Percebe-se uma resistência do sistema de justiça, em aplicar as leis promulgadas. Seus registros demonstram uma intensa disputa interpretativa a respeito das normas e a criação de empecilhos formais para apreciação de denúncias (Muller, 2021). A Lei Áureamarcou a abolição formal do regime de escravização no Brasil. Foi promulgada após uma série de ditames legais que visavam limitar a escravidão, como a Lei Feijó, Lei do Ventre Livre e a Lei do Sexagenário, que mais serviam para postergar o compromisso do país perante atores internacionais do que para caminhar rumo à libertação dos escravizados. O Código Penal de 1890, primeiro da República, não tratava da conduta de escravização indevida (Muller, 2021, p. 52), uma vez que se entendia que a escravidão ficara no passado. O crime de escravização de pessoas foi tipificado pela primeira vez em 1940. O surgimento do tipo, ironicamente, coincide com o programa “Mais Borracha para a Vitória”. A campanha do governo, que visava incentivar trabalhadores a tentar a sorte na extração do látex no norte do país, contribuiu para o recrudescimento da escravidão por dívida e acarretou milhares de mortes oriundas das condições degradantes de vida. De acordo com José Lucas Santos Carvalho,“estima-se que, pelomenos, 30mil trabalhadores em completo abandono durante a extração do que chamavam “ouro branco”. (Carvalho, 2020, p. 99) O art. 149 do Código Penal de 1940 era vago e indeterminado (Castilho, 2000), dispondo: “reduzir alguém à condição análoga à de escravo – pena de reclusão de 2 a 8 anos”. A falta de clareza sobre o objeto jurídico e o ocultamento do núcleo do tipo inviabilizavam o controle via sistema penal. A alteração no art. 149 aconteceu só em 2003, com a Lei n. 10.803/03, ou seja, sua aplicação permaneceu restrita por mais de 60 anos. O artigo reformado traz quatro tipos penais. A condição análoga à de escravo é definida, portanto, como sendo “a (1) submissão de pessoas a trabalhos forçados ou (2) jornada exaustiva, (3) sujeitando-o a condições degradantes de trabalho ou (4) restringindo sua locomoção por qualquer meio, em razão de dívida contraída pelo preposto”. O crime é de ação vinculada, logo, permite a tipificação do ilícito sempre que houver qualquer uma das condutas elencadas
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