E depois dos desastres? Natureza e ciência: uma reconstrução assertiva

NATUREZA E CIÊNCIA: UMA RECONSTRUÇÃO ASSERTIVA Organizadoras: Haide Maria Hupffer Daniela Müller de Quevedo Danielle Paula Martins Casa Leiria

Apoio: Programa de Excelência Acadêmica (PROEX) da CAPES. Processo n.º 88881.845020/2023-01

E DEPOIS DOS DESASTRES? NATUREZA E CIÊNCIA: UMA RECONSTRUÇÃO ASSERTIVA

CONSELHO EDITORIAL CONSULTIVO Dra. Daniela Müller de Quevedo Dra. Danielle Paula Martins Dra. Haide Maria Hupffer Dr. Júlio César da Rosa Herbstrith Dr. Marcelo Pereira de Barros Dr. Tiago Balem

HAIDE MARIA HUPFFER DANIELA MÜLLER DE QUEVEDO DANIELLE PAULA MARTINS (ORGANIZADORAS) CASA LEIRIA SÃO LEOPOLDO/RS 2025 E DEPOIS DOS DESASTRES? NATUREZA E CIÊNCIA: UMA RECONSTRUÇÃO ASSERTIVA

E DEPOIS DOS DESASTRES? NATUREZA E CIÊNCIA: UMA RECONSTRUÇÃO ASSERTIVA Organizadoras: Haide Maria Hupffer Daniela Müller de Quevedo Danielle Paula Martins DOI: https://doi.org/10.29327/5564333 Capa: Vanessa Vingert, fotografia e arte. Os textos são de responsabilidade de seus autores. Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Catalogação na Publicação Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB: 10/973 Casa Leiria Ana Carolina Einsfeld Mattos Ana Patrícia Sá Martins Antônia Sueli da Silva Gomes Temóteo Glícia Marili Azevedo de Medeiros Tinoco Haide Maria Hupffer Isabel Cristina Arendt Isabel Cristina Michelan de Azevedo José Ivo Follmann Luciana Paulo Gomes Luiz Felipe Barboza Lacerda Márcia Cristina Furtado Ecoten Rosangela Fritsch Tiago Luís Gil Conselho Editorial (UFRGS) (UEMA) (UERN) (UFRN) (Feevale) (Unisinos) (UFS) (Unisinos) (Unisinos) (UNICAP) (Unisinos) (Unisinos) (UnB) D422 E depois dos desastres? Natureza e ciência: uma reconstrução assertiva [recurso eletrônico]. / organização Haide Maria Hupffer, Daniela Müller de Quevedo, Danielle Paula Martins. – São Leopoldo: Casa Leiria, 2025. Disponível em: <https://www.casaleiriaacervo.com.br/direito/ depoisdosdesastres/index.html> ISBN 978-85-9509-157-3 1. Ciência ambiental – Eventos hidrológicos – Rio Grande do Sul. 2. Desastres hidrológicos – Impactos socioambientais. 3. Desastres hidrológicos – Impactos sociais, econômicos e psicológicos. 4. Desastres climáticos – Políticas públicas. I. Hupffer, Haide Maria (Org.). II. Quevedo, Daniela Müller (Org.). III. Martins, Danielle Paula (Org.). CDU 504.03(816.5)

7 E depois dos desastres? Natureza e ciência: uma reconstrução assertiva SUMÁRIO 9 PREFÁCIO Fernando Rosado Spilki 11 ENTRE RESTOS E MEMÓRIAS: UMA REFLEXÃO SOBRE AS IMAGENS DO DESASTRE Júlio César da Rosa Herbstrith 25 O DESASTRE CLIMÁTICO DO RIO GRANDE DO SUL: VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS E A INVISIBILIDADE DOS DESTERRADOS AMBIENTAIS Haide Maria Hupffer Thaís Rúbia Roque Agnes Borges Kalil 57 A RELAÇÃO ENTRE OS DESASTRES, AS FLEXIBILIZAÇÕES E COMPORTAMENTOS QUE DESAFIAM O MEIO AMBIENTE Danielle Paula Martins 75 DESASTRES CLIMÁTICOS NO RIO GRANDE DO SUL (19912024) E A CONTRIBUIÇÃO DO DIREITO PARA A MITIGAÇÃO DOS IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS Anderson Moraes da Silva Giovani Spinelli de Almeida Matheus Martini Vanesca Souto Severo Fábio Scopel Vanin Haide Maria Hupffer Daniela Müller de Quevedo Annette Droste 97 QUAIS ATUALIZAÇÕES AS AGENDAS GLOBAIS PARA ENFRENTAMENTO ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS IMPLICAM AO ESTATUTO DA CIDADE? Tiago Balem Bruna Tuane dos Santos Carolina Port Eismann Gustavo Schuh da Silva Vanessa Vingert

E depois dos desastres? Natureza e ciência: uma reconstrução assertiva 8 119 ALÉM DE PERDAS HUMANAS: REFLEXÕES SOBRE OS IMPACTOS DO EVENTO HIDROGEOCLIMÁTICO E SOCIOAMBIENTAL NA BIOTA APÓS O DESASTRE Marcelo Pereira de Barros Jenifer Panizzon Caterine Noschang Júlia Guimarães Borba Leonardo Morellato Pereira Luísa Averbeck 141 PLANEJAMENTO E RESILIÊNCIA: GERENCIAMENTO DE RESÍDUOS SÓLIDOS EM SITUAÇÕES DE DESASTRES Jenifer Panizzon Thaís Fátima Rodrigues Vanusca Dalosto Jahno 155 DA CRISE À INOVAÇÃO: ORQUESTRANDO RESPOSTAS AOS DESASTRES CLIMÁTICOS Claudia Alba Natali Malagri Bruna Lara Moraes Alves Jordana de Oliveira Dusan Schreiber Moema Pereira Nunes 177 DEFESA CIVIL E GESTÃO DE RISCOS: UM ESTUDO SOBRE AS AÇÕES REALIZADAS PELOS MUNICÍPIOS AFETADOS PELOS EVENTOS CLIMÁTICOS DE MAIO DE 2024 NO RIO GRANDE DO SUL Graciane Berghahn Konzen Valessa Jamile Santos Daniela Müller de Quevedo Roberta Plangg Riegel Annette Droste 199 LABORATÓRIO DE MICROBIOLOGIA MOLECULAR E A CRISE AMBIENTAL: RESPOSTA À ENCHENTE DE 2024 NO RIO GRANDE DO SUL Alana Witt Hansen Gabriela Saldanha Monteiro Bruna Saraiva Hermann Juliane Deise Fleck 213 ÍNDICE REMISSIVO

9 PREFÁCIO Fernando Rosado Spilki A crise causada pelas enchentes no Rio Grande do Sul em 2024, sem precedentes históricos da mesma magnitude na região, mesmo que em vias de superação, não deve ter sido o último grande evento climático de nossa existência. Enquanto os modelos atuais apontam algo similar para um prazo entre uma e três décadas à frente, aprendemos consistentemente ao longo dos últimos anos que previsões no contexto da mudança climática podem ser lamentavelmente antecipadas. Impactos estruturais profundos, milhares de pessoas desabrigadas e os riscos sanitários e ambientais que se impuseram na esteira da enchente são um violento aviso dos desafios e de nossa fragilidade neste séc. XXI. Por outro lado, a mobilização consorciada da sociedade, dos órgãos públicos e da comunidade científica tem sido fundamental no processo da (re)construção de um RS mais resiliente. Aliás, a ciência tem sido essencial no enfrentamento desse desastre. Seja na geração de informação qualificada para orientar a população e as políticas públicas, na previsão de novos eventos extremos, no monitoramento de riscos sanitários, no desenvolvimento de soluções emergenciais de engenharia, logística e saúde pública, o papel dos cientistas tem sido absolutamente central. A presente obra traz um registro das ações locais dos nossos pesquisadores nos eventos de 2024, da contribuição da Universidade como um todo ao enfrentamento da crise, mas tambémuma série de reflexões e provocações necessárias para o futuro, tomando por base um conjunto robusto de dados coletados e analisados ao longo dos anos por nossos grupos de pesquisa. Do ponto de vista científico, é urgente fortalecer áreas como meteorologia, hidrologia, modelagem climática, engenharia ambiental, saneamento, saúde pública e urbanismo sustentável. Além disso, será necessário ampliar os estu-

Prefácio 10 dos sobre os impactos sociais, econômicos e psicológicos decorrentes desse tipo de desastre. Que esse triste episódio sirva como ponto de partida e tomada de consciência. Que a ciência continue sendo nossa principal ferramenta não apenas para enfrentar novos desastres, mas, sobretudo, para construir um futuro mais seguro para as futuras gerações de gaúchos. Prof. Dr. Fernando Rosado Spilki Pró-reitor de Pesquisa, Pós-graduação e Extensão da Universidade Feevale Coordenador do INCT em Vigilância Genômica de Vírus e Saúde Única

11 ENTRE RESTOS E MEMÓRIAS: UMA REFLEXÃO SOBRE AS IMAGENS DO DESASTRE Júlio César da Rosa Herbstrith1 O presente texto busca ser um relato em forma de ensaio sobre o impacto das imagens oriundas de calamidades sociais que emergem com o avanço dos eventos climáticos extremos. Parte-se de uma perspectiva de análise da experiência de vivenciar o evento das inundações ocorridas no estado do Rio Grande do Sul em maio de 2024. O texto discorre, sobretudo a respeito das imagens que de forma metafórica, mas nem tanto, inundaram as redes sociais, apresentando os eventos em tempo real. Ainda, problematiza como as imagens podem servir para alimentar o dissenso e construir a controvérsia sobre os fatos, na mediada em que se associam ou são associadas às notícias falsas. Mesmo que o texto seja desenvolvido como um relato ensaístico sobre a memória e as imagens no contexto dos desastres sociais, aportam as reflexões aqui presentes os autores George Didi-Huberman (2018), Giselle Beiguelman (2021) e Jonathan Crary (2023) que discutem a potência das imagens no contexto contemporâneo em uma era de transformações sistêmicas no modelo capitalista. 1 Doutor em História, Teoria e Crítica da Arte pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS. Mestre em História, Teoria e Crítica da Arte pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS. Professor nos cursos de Graduação e Pós-Graduação da Universidade Feevale. Docente integrante do Laboratório de Vulnerabilidades, Riscos e Sociedade da Universidade Feevale (LaVuRS/Feevale). DOI: https://doi.org/10.29327/5564333.1-1

Entre restos e memórias: uma reflexão sobre as imagens do desastre 12 IMAGENS ONÍRICAS E O ALGORITMO DO SONÂMBULO Figura 1: Imagem de casa (inundação bairro Mathias Velho – Canoas/RS). Fonte: próprio autor Em um mundo mediado por e pelas imagens, sobretudo no ocidente cristão, as redes sociais nas últimas décadas se transformaram em um campo de relações tensas a partir de um fluxo de imagens que não poderia ser imaginado há vinte anos. Não só se vive na dadosfera que Giselle Beiguelman apresenta criticamente, como se vive emuma iconosfera, uma união entre omanancial de imagens produzidas perpetuamente e ordenadas como parte dos dados que afluem vinte e quatro horas por dia em um ambiente de rede organizada por algoritmos. Na medida em que as imagens avançam pelas redes sociais e atingem cotidianamente os sujeitos, sua capacidade de afetar, de causar emoção ou reflexão é explorada pelos mais variados sistemas, instituições e, certamente, pelo capital. Mas podem as imagens ordenadas por algoritmos serem transubstanciadas para a forma onírica? Deste modo, rompendo as fronteiras do real para se relevar no subconsciente no espaço ainda não explorado pelo capitalismo 24/7? George Didi-Huberman quando interpelado pelo filósofo Gerardo de la Fuente sobre se existem imagens dos sonhos (as imagens oníricas), responde ao filósofo que o termo “imagem” para a filoso-

13 Júlio César da Rosa Herbstrith fia, sobretudo a pós-estruturalista onde se formou é um termo muito vago. Entretanto, para Didi-Huberman, um “filósofo da migração” como ele mesmo se define, um diálogo, no presente instante em que se realiza, pode ser influenciado por um conjunto de imagem que emergem justamente dos sonhos da noite que antecede o diálogo. Tal proposição está de acordo com a ideia de que as imagens são migrantes e potencialmente estão sempre em fluxo. Não possuem uma fonte, senão que muitas fontes. Didi-Huberman utiliza a analogia de um rio, a imagem como um rio commuitas fontes. Eis o problema posto, uma vez que as imagens estejam em constante migração como afirma o filósofo, não seria natural que em momentos de catástrofes sociais, como as que assolaram o Rio Grande do Sul em maio de 2024, a possibilidade de os sujeitos, mesmo os que experimentaram apenas as imagens do desastre, criarem as suas próprias memórias do desastre com base não inteiramente na experiência factual, mas na experiência virtual? Uma memória que não nasce do fato vivido, mas do evento apresentado pelas imagens organizadas pelo ambiente virtual, conforme as leis dos algoritmos que modelam as redes, e, por que não, as relações sociais. No dia 3 de maio de 2024 comecei a vagar por sonhos alimentados por imagens. Nunca imaginamos estar dentro de acontecimentos históricos, afinal, o cotidiano nos consome de tal forma que as coisas simplesmente acontecem e a vida segue. Na madrugada do dia 4 de maio, no meio de tantas imagens, textos e avisos, um alívio parcial ao saber quemeus irmãos eminhamãe tinham saído de casa. Parcial, porque saíramde casa sim, mas a água os seguiu, no ritmo que a ciência pode prever, mas que o desejo de imaginar uma realidade alternativa fez com que eles mesmos se encastelassem, se ilhassem em uma situação que se desdobra no trauma de ter que fugir e abandonar tudo que é material, ficando apenas com as memórias. As imagens que se presentificaram nos sonhos me acordaram, de tal modo que, desperto, só tinha uma coisa a fazer, continuar vagando pelas redes sociais, buscando por mais imagens e informações. O paradoxo do excesso, quantomais as imagens não davamas respostas, mais elas criavamas condições para a emergência de respostas, retroalimentando a busca. As informações eram apenas imagens que apresentavam o fato pela ótica da catástrofe, ou seja, imagens que geram engajamento nas redes sociais, mas que não informam com qualidade.

Entre restos e memórias: uma reflexão sobre as imagens do desastre 14 Ainda no dia 4 de maio, enquanto eu procurava nas imagens ou algum texto que permitisse ter a certeza de que minha mãe e meus irmãos tinham sido resgatados, aguardando algum áudio onde a voz deles ativasse a imagem de segurança, não sabia que naquele momento minha mãe fechava os olhos dentro de um barco. Apesar de resgatada, durante todo o trajeto do seu resgate ela não quis ver imagem alguma. Ali, naquele momento, o tempo estava suspenso, naquele instante as imagens poderiam assombrar. Naquela situação não ver para não se imaginar dentro da água foi o recurso que minha mãe usou. Fechar os olhos era o instinto de sobrevivência. Neste momento a natureza nos lembra que somos animais e, como qualquer animal queremos mais tempo, queremos mais vida. Sobra o relato que produz nos sujeitos um efeito de imagem, uma ideia de que o fato vivido não dá conta da narrativa, oumelhor, a narrativa seja o discurso ou a imagem é apenas outra coisa, uma outra forma de trazer o trauma para o presente. O umbigo do mundo ou a medida de coisa nenhuma Figura 2: Leonardo da Vinci. Homem Vitruviano 1492. Caneta, tinta, aquarela e ponta de metal sobre papel, 343 x 245 mm – Galerias Accademia, Veneza. Fonte: site Art Web Gallery 1

15 Júlio César da Rosa Herbstrith A imagem anterior é um dos desenhos mais conhecidos de Leonardo da Vinci. No centro do círculo que se sobrepõe ao quadrado, temos o “umbigo do mundo”, a ideia antropocêntrica que visava colocar o Homem como o centro do mundo conhecido. Leonardo foi um dos artistas responsáveis por defender a ideia de que a razão e o intelecto eram o que diferenciava os artistas dos homens comuns, a arte como “coisa da mente” na virada da Idade Média para a Idade Moderna, se colocava como algo distanciado de uma realidade prática, ainda que o próprio artista fosse extremamente racional e pragmático quando solicitadas as suas outras habilidades. Da Vinci entendia que como ser racional, era sua obrigação conhecer a natureza e os mecanismos por traz do funcionamento do mundo Natural. Como a Natureza se comportava, como o movimento das águas influenciava a navegação, como a partir da análise deste mesmo movimento seria possível “domar” um rio. Assim ele usou o desenho, para entender e para dominar objetivamente a Natureza. Assim nasce o Homem Moderno, distante da Natureza. O mapa a seguir, desenhado por Leonardo da Vinci, refere ao Rio Arno, como “Mestre das Águas” título que seria um “equivalente” à Engenheiro Hidráulico, Leonardo trabalho para a Casa dos Borgias, desenvolvendo projetos de drenagens de pântanos, bem como planejamentos para a construção de canais que contornariam o Rio Arno, algo que auxiliaria na manutenção dos moinhos que eram alimentados pelo Rio. Uma vez que durante o outono e primavera este Rio tinha como características extravasar em planícies de inundação, naquela época já ocupadas, em função dos Moinhos. Da Vinci assim como muitos outros artistas de sua época trabalhava para as cortes, para as mais poderosas famílias na Toscana e em Roma, servindo como engenheiro, desenvolvendo experimentos para ordenar a Natureza conforme as necessidades dos mandatários das cidades mais proeminentes da região que hoje, conhecemos como Itália. O seu “Homem Vitruviano”, nada mais é do que a manifestação visual de um pensamento centrado em uma relação objetiva com a Natureza, muito mais de domínio e escrutínio do que de colaboração. Não existe um trabalhar com a Natureza, mas um compreender para dominar, trabalhar fora da Natureza, com o direito “divino” de usufruto sobre seus recursos.

Entre restos e memórias: uma reflexão sobre as imagens do desastre 16 Figura 3: Leonardo da Vinci, A map of the Arno west of Florence. 1504/1504. 42,2 x 24,2 cm Fonte: Google Arts and Culture. A map of the Arno west of Florence- Leonardo da Vinci — Google Arts & Culture No entanto, o que os eventos extremos têm nos mostrado é que somos parte da natureza. Achamos que estamos separados dela, porque construímos ao longo de nossa história a ideia moderna de que o “Homem é o centro de todas as coisas”. Este pensamento de Protágoras (490 a. C – 415 a. C) que Keneth Clark (1903-1983) usa como título de um capítulo de seu livro que celebra a civilização e seus feitos, sobretudo a civilização europeia e a sua produção simbólica denominada Arte, este pensamento nos coloca à parte da Natureza. Leonardo da Vinci, propôs o Homem dentro de um círculo e de um quadrado para relembrarmos da beleza da proporção que Vitruvius (80 a. C – 15 a. C) ensinou em seus tratados. Ao nos colocarmos no centro de todas as coisas, esquecemos que fazemos parte de um fluxo de coisas. Nos separamos da Natureza, porém sem nós ela existiu, sem nós ela resiste, e sem nós ela seguirá.

17 Júlio César da Rosa Herbstrith Figura 4: Caramelo no telhado. Imagem icônica de cavalo tentando sobreviver em Canoas- RS. Fonte: Site UOL – Cavalo Caramelo no telhado: como é feito o resgate nas enchentes do RS. A imagem acima correu pelo país e pelo mundo, símbolo da força e do desejo de sobreviver, o animal se comporta exatamente como qualquer animal, busca o espaço seguro como forma de autopreservação. A mesma vontade de viver que minha mãe e meus irmãos (e muitas mães e muitos irmãos) demonstraram ter quando ilhados, se jogaram dentro de barcos de resgate. São imagens que não existem, mas os relatos se multiplicam que se costuram às imagens correntes, pelas redes, ordenadas pela demanda do engajamento, para dar forma à catástrofe. A imagem aqui se transmuta em um “quase discurso” sobre a resiliência, palavra tão jogada ao vento, que deve ser tratada com cuidado. A resiliência tomada como forma “nobre” de se adaptar às circunstâncias adversas, pode, na verdade se transformar em um método de silenciamento ou amansamento das vozes que poderiam questionar como o sistema pode falhar tantas vezes com os sujeitos, sobretudo os sujeitos minorizados e periféricos. Não tenho imagens de minha mãe no barco, sendo resgatada, menos ainda dela, sendo içada por um lençol para que pudesse acessar a embarcação, uma vez que, por ter uma vida sem saúde, mas de muito trabalho, suas pernas, suas articulações foram comprometidas. O cavalo caramelo é mais conhecido que muita gente, que da mesma forma tentou salvar e ser salvo. Cavalos não contam

Entre restos e memórias: uma reflexão sobre as imagens do desastre 18 histórias, mas fazem parte dela, assim como humanos que contam histórias, deveriam fazer das suas o lembrete de que algo está errado no planeta. Não ser resilientes, mas críticos, olhar para as imagens e através das imagens para ver que as memórias dos desastres tambémpodem ser fruto de uma construção social, baseada na ideia de que sempre seremos nós os seres humanos capazes de superar qualquer coisa que a Natureza nos mande, afinal somos gaúchos e resilientes. Os caramelos nos telhados, as mães, irmãos os pais dividindo espaço com quadrúpedes dentro de barcos, botes e helicópteros nos lembra que somos parte da natureza e que, ao final, temos vontade de vida, de continuar a existir, apesar de tudo. AINDA SOBRE CAVALOS E PESSOAS, IMAGENS E “MEMÓRIAS” Encontramos algumas utopias em nossos caminhos e isto é bom, sobretudo necessário, mas utopia sem pensamento crítico pode se tornar ferramenta de domesticação. A utopias são importantes, por isso, chamo para conversar sobre utopias, imagens e memórias, meu querido professor Edson Luiz André de Souza. Ele não está presente nem de corpo, nem de imagem, mas de texto que mexe com nosso imaginário. Edson escreve e no dia 18 de maio de 2024 o Jornal Zero Hora publica: “Cavalo Caramelo: a esperança no telhado”. Neste texto Edson evoca a potente imagem do cavalo resistindo no telhado. No texto grifado Edson, escreve: “A história contabiliza a destruição e nem sempre anota e guarda na memória as forças de resistência que surgem nesses cenários.” A imagem que talvez não seja guardada pela história, mas que o autor pede que nós guardemos é a do Cavalo Caramelo. O animal que resistiu por quatro dias sobre o telhado de uma casa, no bairro Mathias Velho, em Canoas. Para o autor “Ele materializa o desejo de sobrevivência e a força de vida de milhares de pessoas que enfrentaram as situações mais adversas para encontrar alguma saída diante desta catástrofe.” (Souza, 2024). Uma imagem potente que ganhou o mundo por meio dos veículos de comunicação e das redes sociais. Assim como muitas outras imagens do desastre, casas submersas, barcos e barcos, cães, muitos cães, sobre telhados, dentro das casas, dentro dos barcos no colo de seus donos, carros, muitos

19 Júlio César da Rosa Herbstrith carros, um mar de carros submersos, assim como estas imagens, tantas outras foram geradas por Inteligências Artificiais na intenção de criar uma disputa pela narrativa oficial sobre o evento. Mais uma vez, uma guerra de imagens e discursos opera na construção de nossas memórias sobre o evento. A matéria que Isabela Aleixo publica no veículo UOL, de 31 de maio retoma o assunto da geração de imagens por IA para a construção de discursos sobre os acontecimentos massivos, o título desta matéria – “Imagens geradas por Inteligência Artificial reforçam fake news sobre enchente no Rio Grande do Sul”. Sobre as imagens geradas por IA, uma das mais emblemáticas nos encontrou nas ruas de Novo Hamburgo. Muito antes destamatéria de Aleixo, quandominha companheira e eu procurávamos um lugar para almoçar, em pleno domingo. Um cidadão nos interpelou na rua, ao darmos as informações que ele solicitou, ou ao menos indicar um caminho, ele arremata a conversa nos contando sobre a história de um conhecido dele que, “ao receber o pedido da filha para que ele [o pai] pegasse uma boneca que teria ficado boiando nas águas, o homem [o pai] se aproxima e ao tocar na boneca, percebe que era umbebê”. Esta história, é relatada na matéria de Aleixo. Conforme a autora, a história viralizou nas redes sociais. A única diferença era que o homem que supostamente puxou o braço do bebê não era o pai da menina que solicitou a boneca, mas um socorrista. Aleixo diz que não foi possível verificar a autenticidade do relato, mas que de fato nenhuma autoridade confirmou a história. Esta história ganha corpo em imagem, poderíamos dizer ganha espessura quando uma imagem gerada por IA, de um bebê boiando começa a ser relacionada ao áudio que relata a história. Mesmo quem não presencia o evento, cria para si, uma imagem de fatos que talvez nunca tenham ocorrido. Outra história de desinformação, mobilizou o Exército em Canoas. O Exército ao receber a informação falsa de que uma barragem havia rompido, começou a evacuar as pessoas do bairro Mathias Velho, o mesmo bairro do Cavalo Caramelo. Só podemos imaginar o trauma que movimentou as pessoas a saírem às pressas, novamente, mas agora semmotivo real. Apenas podemos imaginar. As imagens no contexto de disputa por narrativas, geradas por IA, mas pensadas por humanos, criam um espaço de dúvida, de incerteza, podem ser letais, podem causar pâ-

Entre restos e memórias: uma reflexão sobre as imagens do desastre 20 nico, podem fomentar o trauma. É necessário olharmos através das imagens, entender a sua potência e pensar criticamente sobre elas. Imagens e memórias, o professor Iván Izquierdo, no livro “Memória” diz “O acervo de nossas memórias, faz com que cada um de nós seja o que é: um indivíduo, um ser para o qual não existe outro idêntico” (Izquierdo, 2011), em seguida acrescenta que também somos aquilo que desejamos esquecer. Mas este esquecer não é a perda da memória, mas um processo de seleção que faz com dificultamos, por algummotivo, o acesso às memórias que não desejamos ter. O autor Jaques Le Goff ao analisar conceitualmente os documentos e monumentos nas suas relações com a história, escreve sobre umamemória coletiva. Para o autor, os documentos emonumentos são osmateriais que se aplicamà estamemória coletiva. Segundo Le Goff o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, se não que uma seleção efetuada por aqueles que se dedicam ao estudo do passado. A História, por óbvio é uma construção dentro uma coletividade que se baseia nos documentos, já os monumentos são a herança deste passado coletivo. Mas e quando muito do que está sendo escrito, sofre agora um processo de seleção e edição em tempo real, realizada conforme a ordenação dos algoritmos? Quando as informações precisam ser checadas constantemente para que o processo de arquivamento e recuperação das informações possa no futuro garantir com maiores assertividades as conexões com os fatos realmente ocorridos, não estaríamos diante de um novo paradigma da memória? Dito de outra, forma a história se baseia em documentos oficiais, mas a memória viva, é uma construção coletiva, portanto, o advento das redes e das montagens e edições propiciadas no seu interior colocam o desafio de sabermos ler criticamente o que nos é apresentado em termos de imagens ou no sentido amplo semiótico de texto. Tentando fazer uma costura que pode parecer impossível entre a memória em seu aspecto fisiológico, discutida por Izquierdo e a Memória Social apontada por Le Goff, seria possível compreender que existem memórias, a do indivíduo que parte de um acervo único, e a coletiva que parte de contexto distintos e que passa por seleções. Entretanto, ambas passam por seleções, inclusive aquelas que queremos esquecer e aquelas que desejamos lembrar. Mas, as memórias são nossas? Se os sonhos não são mais o campo da livre associação, porque vivemos iconosfera organizada

21 Júlio César da Rosa Herbstrith no contexto da dadosfera, as memórias não podem também ser um campo de disputa, para a construção de narrativas? Os documentos de nossas memórias, emummundo hiper midiatizado são plurais, materiais ou digitais, eles existem e transitam entre o virtual e o real. Os lugares que acessamos para lembrar, ou que buscamos para evocar, trazer à luz lembranças não estão mais apenas atrelados ao espaço físico, estático e consolidado do arquivo. Agora, estão em rede, nas memórias que o Google nos oferta e que as vezes não queremos lembrar. Será que em maio de 2025 seremos mergulhados pelo Google em imagens das inundações? As mesmas imagens que foram feitas para lembrar ou para provar para o Estado que se passou pelo evento catastrófico, se sobreviveu, mas foi necessária a ajuda do ente público e a imagem vem como prova. As casas submersas não eram apenas o abrigo para os corpos que as habitam, mas o lugar de construção de memórias e de evocação de memórias o espaço físico damemória. Nestasmemórias individuais, não somente operam os documentos oficiais, os registros de nascimento e morte, do casamento e divórcio, de compra e venda, os boletos, todas formas de agrupamento de informações sobre a vida cotidiana. As memórias dentro das casas são evocadas, por cheiro, por toque, pela relação dos corpos com o espaço que habitam, pelo ranger da porta empenada, pela marca na parede que registra a passagem do tempo do filho ou da filha, pelo cheiro dos gatos e cachorros, pelo lugar reservado para o café da manhã. A casa é antes o lar, lugar que abriga, conforta, acolhe, um lugar que construímos para ser o repositório de nossasmemórias. Pode ser coletivo ou individual, mas ali seguimos dando forma ao que por fim seremos quando o fim chegar, mesmo que nossas histórias sejam pautadas pelos trânsitos, o lar é o lugar do ser em formação. O que as imagens nos mostram podem caber na contabilidade do capital, mas o que nelas não consta é o valor simbólico, o valor que cada indivíduo dá ao seu espaço. Somemos às imagens das casas submersas às imagens das imagens submersas. As fotografias, a história das vidas contadas através da imagem. A imagem que se refere ao outro, a imagem que evoca imagens para a construção dos imaginários, para manutenção das memórias, para o registro das histórias. Embarradas, soterradas destruídas, as fotografias que se foram nos contarão a cada um de nós sobre os dias em que a natureza nos lembrou que somos parte dela,

Entre restos e memórias: uma reflexão sobre as imagens do desastre 22 A imagem tem potência. Assim responde o filósofo e historiador da Arte Georges Didi-Huberman ao também filósofo mexicano, Gerardo de la Fuente quando de la Fuente aborda a questão da imagem como forma que trespassa as fronteiras e da tentativa dos poderes de deter as imagens. Didi-Huberman comenta que nada pode deter o fluxo das imagens, pois elas fluem, como um rio. Esta metáfora da imagem como um rio, por mais tensa que seja, nos indica que qualquer imagem, falsa ou verdadeira tempotência, mas esta potência vai sempre depender do uso das imagens e de como percebemos e relacionamo-nos com elas. Para Didi-Huberman existe uma migração do espaço e uma migração no tempo, no caso das imagens, o autor retoma, portanto, o que Aby Warburg (1866-1929) chamava de sobrevivência. A imagem sobrevive a quem faz a imagem. O autor aponta que uma imagem sempre se refere à outra coisa, portanto a imagem não é uma coisa em si, mas é algo sempre relativo à outra coisa. Imagens como texto, como fotografia, imagens como sonhos. A lembrança como uma imagem. As imagens que aparecem nos sonhos podem influenciar o discurso cotidiano, uma vez que as imagens estão em contante migração. Sendo fundamental ter um conhecimento crítico sobre a imagem, por isso mesmo compreender que as imagens têm espessura, tem raízes. Didi Huberman usa como metáfora o rio, que não possui uma única fonte, mas múltiplas fontes, um bosque que não possui apenas uma raiz, mas muitas raízes. Assim é a imagem, um fluxo contínuo cuja origem é o encontro de múltiplas fontes e experiências. E o resto, quando a imagem é afogada? Mas ao mesmo tempo nos afoga, quando o rio de imagens não nos deixa dormir? E quando as imagens cessam? Quando aqueles que esperam pelas imagens dos parentes, dos animais de estimação, das suas casas, ou dos restos, não temmais imagens, neste caso a imaginação assume. E, imaginar é um ato poderoso.

23 Júlio César da Rosa Herbstrith Figura 5: Júlio César Herbstrith. Imagens de fotografias marcadas pela Inundação. A esquerda, filha do autor, no centro a mãe e a direita o autor. Fonte: Próprio autor. REFERÊNCIAS BEIGUELMAN, Giselle. Políticas da Imagem: vigilância e resistência na dadosfera. São Paulo: Ubu, 2021. CRARY, Jonathan. Terra arrasada: além da era digital, rumo a um mundo pós-capitalista. São Paulo: Ubu, 2023. IZQUIERDO, Iván. Memória. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2011. LE GOFF, Jacques. História e memória. 5. ed. Campinas, SP: Unicamp, 2003.

25 O DESASTRE CLIMÁTICO DO RIO GRANDE DO SUL: VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS E A INVISIBILIDADE DOS DESTERRADOS AMBIENTAIS Haide Maria Hupffer1 Thaís Rúbia Roque2 Agnes Borges Kalil3 INTRODUÇÃO A maior tragédia climática de âmbito nacional, ocorrida no estado do Rio Grande do Sul em 2024, deixou marcas profundas em todos os pilares que sustentam o conceito tradicional de sustentabilidade: ambiental, econômico e social. Em um primeiro momento, pode parecer redundante ou mesmo evidente afirmar que as enchentes de 2024 violaram direitos fundamentais, tais como o direito à vida, à dignidade, à saúde, à moradia e ao acesso a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. No entanto, não mencionar essas violações equivaleria a reforçar a postura negacionista que minimiza a gravidade da crise 1 Pós-Doutora e Doutora em Direito pela Unisinos. Docente e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Qualidade Ambiental e do curso de Direito da Universidade Feevale. Líder do Grupo de Pesquisa CNPq/Feevale Direito e Desenvolvimento. Líder do Projeto de Pesquisa Lider do Projeto de Pesquisa CNPq “Inteligência Artificial para um Futuro Sustentável: Desafios Jurídicos e Éticos”. Integrante do Laboratório de Vulnerabilidades, Riscos e Sociedade da Universidade Feevale (LaVuRS/Feevale). 2 Doutoranda e Mestre em Qualidade Ambiental pelo Programa de Pós-Graduação em Qualidade Ambiental da Universidade Feevale. Bacharela em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Integrante do Laboratório de Vulnerabilidades, Riscos e Sociedade da Universidade Feevale (LaVuRS/ Feevale). 3 Doutoranda e Mestre em Qualidade Ambiental pelo Programa de Pós-Graduação em Qualidade Ambiental da Universidade Feevale. Bacharela em Direito pela Universidade de Caxias do Sul – UCS. Integrante do Laboratório de Vulnerabilidades, Riscos e Sociedade da Universidade Feevale (LaVuRS/Feevale). DOI: https://doi.org/10.29327/5564333.1-2

O desastre climático do Rio Grande do Sul: violações aos direitos humanos e a invisibilidade dos desterrados ambientais 26 climática contemporânea. Vidas foram perdidas. A fauna e a flora sofreram impactos cujos tempos de recuperação são incertos ou, em alguns casos, talvez irreversíveis. O setor econômico registrou prejuízos que ainda reverberam meses após o evento e os sistemas de saúde, educação e segurança pública foram severamente sobrecarregados. Nesse sentido, o objeto deste capítulo é expor a violação aos direitos humanos ocasionadas durante as enchentes de 2024, provocando a reflexão sobre a invisibilidade dos desterrados ambientais, sua conexão com o racismo ambiental e a responsabilidade do Estado em situações de desastre. Para tanto, este capítulo é divido nos seguintes subtítulos: 1. O desastre climático no Rio Grande do Sul: uma catástrofe anunciada, no qual são abordadas as diferentes perspectivas do desastre; 2. Violações aos direitos humanos: perdas e dores que se entrelaçam, em que são destacados o abalo à direitos e a responsabilidade do Estado em situações de desastres; 3. Desterrados ambientais: conexões entre expulsão forçada, não-retorno, racismo ambiental e o papel do Estado na não repetição. Para tanto, a metodologia utilizada no presente estudo é de natureza qualitativa, exploratória e descritiva, estruturada no método dedutivo e com apoio na pesquisa bibliográfica e documental. O DESASTRE CLIMÁTICO NO RIO GRANDE DO SUL: UMA CATÁSTROFE ANUNCIADA Nos meses de abril e maio de 2024, o Estado do Rio Grande do Sul sofreu uma catástrofe ambiental sem precedentes, resultado das fortes chuvas que em algumas regiões passaram de 300 milímetros (mm) em menos de uma semana. Porto Alegre chegou ao volume de 258,6 mm em apenas três dias, tal valor correspondeu a mais de dois meses de chuva comparado ao normal climatológico dos meses de abril (114,4 mm) e de maio (112,8 mm) (Brasil, 2 maio 2024). O desastre foi devastador para o Estado e causou um impacto profundo na vida de aproximadamente 2.398.255 gaúchos, com 876.565 pessoas diretamente afetadas, comprometendo gravemente o bem-estar, saúde e segurança dos atingidos. Infraestruturas vitais foram perdidas, o que dificultou ainda mais os esforços de ajuda e recuperação. Registros apontam 183 mortes (115 homens, 60

27 Haide Maria Hupffer, Thaís Rúbia Roque e Agnes Borges Kalil mulheres e 7 não identificados, dos quais pelo menos 55 são idosos e 13 crianças ou adolescentes), 27 desaparecidos e 806 feridos. Os dados oficiais apontam que foram resgatadas 77.712 pessoas pelas autoridades públicas, além de milhares de gaúchos resgatados por voluntários e 581.638 ficaram semmoradias. Em 117 cidades foram criados 980 abrigos gerenciados por autoridades públicas, sociedade civil organizada ou voluntários. Nestes abrigos, “foram atendidas 81.170 pessoas impedidas de retornar a suas casas, temporária ou permanentemente, e que não tinham alternativa de moradia” (Suarez; Bello; Campbell, 2024, p. 17-18). Dentre os municípios que foram mais fortemente impactados estão os mais populosos do Estado do Rio Grande do Sul, principalmente na Região Metropolitana, Serra Gaúcha e na Aglomeração Urbana do Sul nas sub-bacias do Guaíba onde correm os principais rios como o Taquari-Antas na Serra Geral, o Baixo Jacuí, Caí, Sinos e Gravataí na Depressão Central e parte do Litoral. Todos os rios dessas bacias, exceto os do Litoral, desaguam no assim denominado “Lago Guaíba” (Rückert et al., 2024). Alémdas milhares de famílias desabrigadas, milhares de animais foram abandonadas, desde os que possuíam residência, em situação de rua, animais comunitários, animais de produção, animais submetidos a maus-tratos. Todos eles, seres humanos e animais necessitavam de ajuda, como locais de abrigo, resgate, alimentação e necessitavam ser tratados com respeito e compaixão, dadas as circunstâncias catastróficas que enfrentavam. Falar sobre o direito dos animais, no desastre, foi desafiador, visto que muitos seres humanos não entendem que os animais também foram vítimas dessa tragédia, a preocupação inicial foi voltada apenas a eles, humanos. Esse pensamento e prática lentamente vem sendo superado, e felizmente muitos protetores de animais, organizações governamentais (OGNs), voluntários e simpatizantes da causa animal foram protagonistas e assumiram uma responsabilidade e dever para com os animais que foram esquecidos por grande parte da sociedade e ignorados pelo poder público (Hupffer; Roque; Barros, 2024). O Estado do Rio Grande do Sul se uniu e milhares de vidas tanto humanas quanto animais foram salvas, graças a resiliência e persistência da população.

O desastre climático do Rio Grande do Sul: violações aos direitos humanos e a invisibilidade dos desterrados ambientais 28 Foram resgatados e encaminhados para abrigos cerca de 20.000 animais de estimação, entre cachorros, gatos e cavalos (Dilly, 2024). O número de animais de produção (suínos, aves, bovinos, equinos) vítimas também do desastre é inquietante, tendo em vista que grande parte desses animais, por serem criados em sistema de confinamento, não conseguiram fugir e ficaram presos nas instalações e sistemas de confinamento. Muitos morreram afogados ou por falta de alimentos, água e energia. Cerca de um milhão de animais explorados para consumo foram encontrados mortos, conforme denúncia da ONG Mercy for Animals, embora organizações do setor contabilizem as mortes desses animais como prejuízos econômicos, cabe frisar, que foram vidas de seres sencientes ceifadas nessa tragédia. Importante destacar a dimensão dessas perdas e a vulnerabilidade dos locais utilizados para a criação de animais de produção frente a eventos climáticos, o desastre de 2024 revelou que é extremamente necessário realocação e adequação dessas estruturas, tendo em vista que esses animais, são possuidores de direitos e detentores de dignidade (Hupffer; Roque; Barros, 2024). Apesar de estudos demonstrarem que áreas urbanas são mais suscetíveis de serem atingidas, devido a ambientes instáveis como planícies de inundações, morros e encostas, além do crescimento populacional desordenado. Cabe frisar que a inundação do RS não realizou distinção entre áreas urbanas ou rurais, milhares de granjas do agronegócio foram afetadas pelas águas, destruindo máquinas agrícolas, lavouras e matando rebanhos inteiros de animais. Ainda, localidades foram totalmente destruídas, como é o caso de Roca Sales e Muçum, esses municípios terão a tarefa árdua de reconstruir em novos locais (Rodrigues et al., 2024). O nível do Guaíba atingiu nível histórico com5,35metros (superando o nível de alerta de 3,6 metros) contra 4,75 (com a cota de inundação em 3,00) quando ocorreu a maior enchente da região no ano de 1941. O sistema de defesa contra enchente da capital falhou, como também de outras cidades da Região Metropolitana, ampliando as inundações emvárias áreas urbanas e costeiras. Cinco grandes barragens na Serra Gaúcha se romperam ou estiveram a ponto de romper, como também vários diques e comportas nas cidades (Rückert et al., 2024).

29 Haide Maria Hupffer, Thaís Rúbia Roque e Agnes Borges Kalil Foi o desastre mais catastrófico da história do Rio Grande do Sul, com inundações e movimentos de terra de grande magnitude. O Taquari na cidade de Lajeado chegou aos 25,5 metros de altura, superando seu nível de alerta de 19,5 metros”. Em Rio Pardo, o rio Jacuí atingiu 19,94 metros, ultrapassando seu nível de alerta de 18 metros. Na cidade em São Sebastião do Caí, o rio Caí registrou níveis de até 12 metros, ultrapassando sua cota de alerta de 8,5 m. Outros rios, como o rio Gravataí, rio dos Sinos e rio Uruguai também registraram níveis altos, ultrapassando o nível de alerta, inundando bairros, áreas industriais, comunidades ribeirinhas e comunidades transfronteiriças. As precipitações no período representaram um aumento de mais de 230%, apenas na Região Metropolitana de Porto Alegre foram aproximadamente 600 mm, enquanto a média do período era de cerca de 180 mm (Suarez; Bello; Campbell, 2024, p. 29). A infraestrutura do Estado foi profundamente comprometida, com mais de 400 mil edificações danificadas, das quais 44,6 mil severamente afetadas ou completamente destruídas (Carpentieri, 2024). A capital ficou sem ligação externa terrestre ou área, salvo por uma única via simples, a rodoviária interestadual/internacional de Porto Alegre foi inundada, o prejuízo parcial estima-se em torno de R$ 8 milhões. A Trensurb antes da enchente transportava cerca de 120 mil pessoas por dia e foi quase toda destruídas pelas inundações. O Aeroporto Internacional Salgado Filho foi inundado tanto nas instalações quanto em sua pista principal. O prejuízo para toda a cadeia produtiva e de turismo chegaria em R$ 400 milhões mês ao Estado (Rücker et al., 2024). Ainda, 124 trechos de estradas foram bloqueados, parcialmente ou totalmente, 191,3 mil pontos sem energia elétrica, mil escolas fechadas. Cidades ficaram submersas, bairros desapareceram, estádios de futebol foram inundados, ônibus intermunicipais suspensos (Borges; Araújo, 2024). O Estado do Rio Grande do Sul é um dos maiores produtores de grãos do país, é o maior produtor de arroz a nível nacional, correspondente a 70% da produção deste grão, após as inundações, as perdas que correspondem a produção poderiam chegar até 68 milhões. As perdas também atingiram outras plantações como milho e soja, além dos animais como já citados, que foram afetados diretamente, á exemplo, no município de Estrela, mais de 56 mil fran-

O desastre climático do Rio Grande do Sul: violações aos direitos humanos e a invisibilidade dos desterrados ambientais 30 gos morreram afogados. Assim sendo, os prejuízos são inestimáveis (Borges; Araújo, 2024). Foi publicado o Decreto Estadual de Calamidade Pública n.º 57.596, de 1º demaio de 2024, alémdisso, no dia 30 demaio foi publicado o Decreto n.º 57.646, de 2024, que especificava 95 municípios em estado de calamidade pública e 323 em situação de emergência. Nesses 418 municípios, estão sediadas 47 mil industriais gaúchas, que empregam 813 mil pessoas, que podem ter sido afetadas de forma parcial ou total (Henkes, 2024). Nas encostas da Serra Geral, em torno de 15 mil cicatrizes de deslizamentos abriram-se devastando terras agrícolas e pequenas cidades. Em termos comparativos de grande magnitude, os deslizamentos revelaram ser três vezes mais do que o evento emPetrópolis/ RJ, o que demonstra a severidade dos eventos climáticos no Estado como um dos mais significativos ocorridos no Brasil até a presente data (Rückert et al., 2024). No caso do Estado do Rio Grande do Sul, os primeiros alertas municipais de risco hidrológico forampara região central e oeste, no dia 29 de abril, nível moderado. A maioria dos alertas para a região teve seu nível elevado para risco alto no dia 30 de abril. A cidade de Lajeado foi um dos primeiros municípios que recebeu alerta de risco hidrológico alto no dia 30 de abril e nível muito alto em 24 horas, eram observados acumulados significativos em toda a Bacia do Taquari, que indicava o agravamento e permanência das inundações e alagamentos nos dias consecutivos (Marengo et al., 2024). Na capital, Porto Alegre, o rompimento da comporta no dique do Guaíba e suas consequências não foi somente causada pelo evento extremo de tempo ou clima. Foi também resultado da vulnerabilidade tecnológica e negacionismo da grave situação que provocou as inundações, evidenciou-se o quanto as vulnerabilidades foram determinantes nos impactos causados (Marengo et al., 2024). A associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural encaminhou no dia 26 de abril de 2024, um ofício intitulado Alerta ao Estado do Rio Grande do Sul e ao Governador. O documento destacava a ação direta do governo estadual em flexibilizar o código ambiental em várias áreas, liberação de mais agrotóxicos, a destruição de Áreas de Preservação Permanente, a ausência de políticas de recuperação de matas ciliares, o incentivo à construção de polos carbo-

31 Haide Maria Hupffer, Thaís Rúbia Roque e Agnes Borges Kalil químicos, a falta de reconhecimento dos direitos das comunidades tradicionais e a má gestão dos recursos hídricos (Carpentieri, 2024). Catástrofes climáticas vêm ocorrendo de forma constante no Estado do Rio Grande do Sul, provocando impactos significativos. No setor econômico como exemplo, entre os anos de 2003 e 2021, haviam sido registradas 4.230 ocorrências, pesquisas relevam que, entre os anos de 2017 a 2021, cerca de 4,44 milhões de pessoas gaúchas foramafetadas de alguma forma, seja por alagamentos, inundações ou estiagens. As estimativas apontam um prejuízo econômico de aproximadamente 97,6% na área privada e 2,3% na área pública (Rodrigues et al., 2024). Foi implementada em 2010, a Política Gaúcha sobre Mudanças Climáticas (PGMC), sancionada pela Lei n.º 13.594/2010, foram estabelecidos 14 objetivos específicos para mitigação e adaptação. Todavia, ressalta-se que, após 14 anos de vigência da lei, por prazos determinados na legislação federal e estadual, não se tem notícia da criação e implementação dos instrumentos previstos nessa norma, nenhum foi cumprido. O Estado do Rio Grande do Sul, no que consiste a política governamental e consolidação de políticas socioambientais demonstra uma clara necessidade de readequação das posições assumidas (Fraga; Pinto, 2024). O atual governador do RS, Eduardo Leite (PSDB), que está no poder desde 2019, em seu primeiro ano de mandato, alterou 480 pontos no Código Ambiental do Estado, por meio do Projeto de Lei n.º 431 de 2019, que instituiu o novo Código Ambiental do Rio Grande do Sul, Lei n.º 15.434/2019. Cabe destacar, que o Código anterior era considerado ummodelo pioneiro na proteção ambiental do país (Borges; Araújo, 2024). A proteção ao meio ambiente e a todas as formas de vida é um dever imposto ao poder público e a comunidade. Ressalta-se, que o Brasil é reconhecido como um dos países com a maior legislação ambiental do mundo, e mesmo assim, o direito ambiental não é tutelado como deveria ser, normalmente, perde na disputa da balança para o sistema econômico, resultado disso, eventos climáticos extremos. Os três poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário têm o dever constitucional de representar os interesses da comunidade e proteger os ecossistemas e a sadia qualidade de vida. Todavia, entre o que está escrito na lei e a relação que o homem possui com a natu-

O desastre climático do Rio Grande do Sul: violações aos direitos humanos e a invisibilidade dos desterrados ambientais 32 reza e os animais é a consequência da maneira como a sociedade se posiciona em relação a ela (Hupffer; Roque; Barros, 2024). O Brasil possui capacidade de monitorar e emitir alertas, tem capacidade de fazer a gestão de riscos, todavia, fazer a previsão do tempo é um dos componentes e não o principal. Nesse contexto, o Plano de Adaptação às Mudanças Climáticas pode salvar vidas, reduzir os impactos dos desastres e perdas materiais. Faz-se necessário a desnaturalização dos desastres frequentemente chamados de naturais. A tragédia ocorrida em abril e maio de 2024, no Estado do Rio Grande do Sul evidencia as consequências da flexibilização da legislação ambiental, negacionismo climático e o desmonte dos serviços públicos são desproporcionalmente suportados por populações historicamente vulneráveis e marcadas por desigualdades sociais e injustiças. A destruição de lares e comunidades desfaz laços sociais e culturais, resultando em perdas irreparáveis de identidade e solidariedade (Carpentieri, 2024). Nesse sentido, uma governança climática é de suma importância para proteção dos ecossistemas e de comunidades vulneráveis, especialmente na promoção, coordenação e implementação de políticas que mitigam os impactos das mudanças climáticas. Investimentos em infraestrutura resistente ao clima, educação ambiental, educação animal, capacitação para adaptações e mecanismos de financiamentos que ajudem as comunidades a se recuperarem de eventos climáticos extremos são algumas políticas que integram o princípio de uma governança climática (Fraga; Pinto, 2024). Paulo Artaxo (2024) declara que as mudanças climáticas estão aumentando a intensidade e frequência dos eventos climáticos extremos, e que para prevenir situações como a que o Estado sofreu é necessário reforçar, e muito, a Defesa Civil de cada Município, de cada Estado e uma Coordenação a nível Nacional, para que efetivamente se possa proteger a população desses eventos climáticos extremos. O pesquisador frisa que “hoje eles são previsíveis, vão ocorrer de maneira cada vez mais frequente, então não há a menor justificativa para não agir agora para proteger dos próximos eventos climáticos extremos que vão acontecer, talvez daqui uma semana, ummês ou um ano, mas eles vão acontecer; não há a menor dúvida” (Artaxo, 2024).

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