Jânia Maria Lopes Saldanha Lucas Paulo Orlando de Oliveira Muriele de Conto Boscato Pedro Victor dos Santos Witschoreck Cássia Ellen Menin Amábily Mattner Mello Yoshiaki Yamamoto Kiyama Casa Leiria RAÍZES E RAMIFICAÇÕES A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19
Este livro é o resultado parcial da pesquisa no âmbito do seguinte projeto de investigação científica: “SINDEMIA E DIREITOS HUMANOS: MECANISMOS TRANSICIONAIS, RESPONSABILIZAÇÃO ESTATAL E CORPORATIVA” Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações – MCTI Edital Universal 2021 Processo n.º 408810/2021-1 Coordenação: Jânia Maria Lopes Saldanha.
RAÍZES E RAMIFICAÇÕES A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 Jânia Maria Lopes Saldanha Lucas Paulo Orlando de Oliveira Muriele de Conto Boscato Pedro Victor dos Santos Witschoreck Cássia Ellen Menin Amábily Mattner Mello Yoshiaki Yamamoto Kiyama CASA LEIRIA São Leopoldo-RS 2025
Catalogação na Publicação Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973 Casa Leiria Ana Carolina Einsfeld Mattos Ana Patrícia Sá Martins Antônia Sueli da Silva Gomes Temóteo Glícia Marili Azevedo de Medeiros Tinoco Haide Maria Hupffer Isabel Cristina Arendt Isabel Cristina Michelan de Azevedo José Ivo Follmann Luciana Paulo Gomes Luiz Felipe Barboza Lacerda Márcia Cristina Furtado Ecoten Rosangela Fritsch Tiago Luís Gil Conselho Editorial (UFRGS) (UEMA) (UERN) (UFRN) (Feevale) (Unisinos) (UFS) (Unisinos) (Unisinos) (UNICAP) (Unisinos) (Unisinos) (UnB) R161 Raízes e ramificações : a justiça de transição na América Latina em tempos de COVID-19 [recurso eletrônico]. / Jânia Maria Lopes Saldanha… [et al.] - São Leopoldo : Casa Leiria, 2025. Disponível em: <http://www.casaleiriaacervo.com.br/direito/ raizeseramificacoes/index.html> ISBN 978-85-9509-156-6 1. Direitos humanos – Justiça de transição – América Latina. 2. Comissão Interamericana de Direitos Humanos – Justiça de transição. 3. Justiça de transição – América Latina – COVID-19. 4. Crise pandêmica – COVID-19 – Justiça de transição. I. Saldanha, Jânia Maria Lopes. CDU 342.7 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19. DOI: 10.29327/5577402 Revisão e edição: Casa Leiria. Fotografia da capa: Rafael Vilela. Fotografia produzida com apoio do Fundo Emergencial Covid-19 para Jornalistas, da National Geographic Society. Fotografia da contracapa: Nicolas Meunier, VIM, INRAe Jouy En Josas. Epitélio olfativo infectado pelo SARS-CoV-2 (vermelho) e invadido por células imunológicas (verde). Os núcleos estão coloridos em azul. Os textos são de responsabilidade dos autores. Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.
Em memória dos que se foram. Para que os que virão não esqueçam.
7 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 AGRADECIMENTOS Este livro é o resultado de um esforço coletivo, construído por muitas mãos, vozes e trajetórias. Ao longo da sua elaboração, foram muitos os encontros – acadêmicos, institucionais e afetivos – que contribuíram de forma decisiva para que esta obra se concretizasse. Agradecemos, em primeiro lugar, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que financiou o projeto Sindemia e Direitos Humanos: mecanismos transicionais, responsabilização estatal e corporativa, sob a coordenação da Professora Jânia Maria Lopes Saldanha, também autora desta obra. O apoio do CNPq foi fundamental não apenas para a viabilização da pesquisa, mas também para a própria publicação do livro, reafirmando o papel central do financiamento público na produção de conhecimento crítico e comprometido com a transformação social no Brasil. Destacamos a importância do investimento contínuo e estruturado em ciência e tecnologia, especialmente em contextos de crise. Pesquisar é também um ato de resistência e de construção de alternativas e, para isso, políticas públicas de fomento à pesquisa científica são essenciais. Registramos, ainda, nossa gratidão às pesquisadoras e aos pesquisadores que, de forma direta ou indireta, contribuíram com reflexões, leituras, dados, debates e inspirações que enri-
8 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 queceram o percurso investigativo e metodológico desta obra. O caráter coletivo deste trabalho é expressão de um ambiente de colaboração acadêmica que valoriza o diálogo, a escuta e a construção conjunta de saberes. Agradecemos ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), que acolheu institucionalmente o projeto e ofereceu as condições necessárias para o seu desenvolvimento, especialmente na linha de pesquisa Hermenêutica, Constituição e Concretização de Direitos, que se caracteriza como um espaço ímpar para reflexões críticas e interdisciplinares. Nosso reconhecimento se estende também aos dois projetos de pesquisa que dialogaram diretamente com esta investigação e contribuíram de forma decisiva para a ampliação das perspectivas aqui apresentadas. O primeiro é o IRP ALCOM – Contributions de l’Amérique latine à l’esquisse d’un droit commun, fomentado pelo Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) da França e desenvolvido sob a coordenação da Professora Kathia Martin-Chenut. O segundo é o projeto Crises Multissetoriais e Sistêmicas, coordenado pelo Professor Anderson Vichinkeski Teixeira, que também atua como coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, e foi financiado no âmbito do Edital CAPES-COFECUB nº 32/2022. Ambos os projetos possibilitaram o intercâmbio entre pesquisadores e instituições, enriquecendo substancialmente esta obra. Por isso, somos imensamente gratos aos dois coordenadores desses projetos. Por fim, agradecemos a todas as pessoas envolvidas no processo de produção editorial, revisão e organização deste livro. A materialização deste volume é fruto do compromisso coletivo com uma ideia de justiça que não se encerra no passado, mas se projeta no presente e no futuro, com raízes profundas e ramificações potentes
Profitons de la pandémie pour faire la paix avec la Terre. Mireille Delmas-Marty
10 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 SUMÁRIO 13 PREFÁCIO. AS CRISES DO SIDH E O PAPEL DO SIDH NAS CRISES 19 APRESENTAÇÃO 23 CONSIDERAÇÕES INICIAIS. AS RAÍZES DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: REFLEXÕES SOBRE O PASSADO E A EMERGÊNCIA DAS NOVAS CRISES 29 PARTE 1 – CRISES, VELHAS CRISES E VELHAS RESPOSTAS: AS RAÍZES DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO 29 1.1 Crise: uma perspectiva multiforme 30 1.1.1. Entre crítica e crise: alguns aportes de Koselleck 39 1.1.2 A crise como revelador e como antecipador em Morin 48 1.1.3 A crise na perspectiva do horizonte de expectativa e do espaço da experiência: a interpretação de Ricœur 56 1.1.4 A universalidade comportamental das crises: o que diz a teoria sistêmica pela lente de Mascareño 63 1.1.5 À guisa de conclusão: convergências e divergências conceituais 66 1.2 As velhas crises 73 1.3 Velhas respostas e as raízes da Justiça de Transição: a consolidação dos mecanismos transicionais no Sistema Interamericano de direitos humanos 74 1.3.1 Genealogia e consolidação dos mecanismos de justiça de transição no direito internacional 82 1.3.2 Aplicabilidade dos mecanismos transicionais na América Latina para superação dos regimes autoritários 90 1.3.3 Justiça de transição diante da pandemia de covid-19: reflexões sobre os mecanismos clássicos à luz da devida diligência 101 PARTE 2 – NOVAS CRISES, NOVAS RESPOSTAS: A PANDEMIA E AS RAMIFICAÇÕES DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO 101 2.1 As novas crises 111 2.2 Da governança pública errática às resposta do SIDH às ações e omissões dos atores públicos durante a pandemia de covid-19 113 2.2.1 Medidas normativas, administrativas e jurisdicionais da Comissão Interamericana de Direitos Humanos 114 2.2.1.1. Medidas normativas: resoluções com standards 116 2.2.1.2. Medidas administrativas
11 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 116 2.2.1.2.1 Comunicados de Imprensa: uma proposta de categorização 148 2.2.1.2.2. Relatórios 157 2.2.1.3. Medidas jurisdicionais 158 2.1.1.3.1. Número de Medidas Cautelares 161 2.2.1.3.2. Conteúdo das Medidas Cautelares 168 2.2.2 Medidas administrativas e jurisdicionais da Corte Interamericana de Direitos Humanos 168 2.2.2.1. Medidas administrativas 168 2.2.2.1.1. Declarações 169 2.2.2.1.2. Comunicados de Imprensa 174 2.2.2.2. Medidas jurisdicionais 174 2.2.2.2.1. Medidas Provisórias 179 2.2.2.2.2. Opiniões Consultivas 181 2.1.2.2.3. Sentenças 183 2.2.3 Limitações 184 2.3 Da governança privada errática às respostas do SIDH às ações e omissões dos atores privados durante a pandemia de covid-19 185 2.3.1. Os standards de direitos humanos e empresas 186 2.3.1.1. No quadro das Nações Unidas 192 2.3.1.2 No quadro da OIT 198 2.3.1.3 No quadro do Sistema Interamericano de Direitos Humanos 204 2.3.2. As pistas encontradas pelas resoluções das medidas cautelares na atividade preventiva da CIDH entre os anos 2020 a 2023 206 2.3.2.1. Resolução 23/20 contra a Argentina 219 2.3.2.2. Resolução 35/20 e Resolução 94/20 contra o Brasil 227 2.3.2.3. Resolução 81/20 contra o Peru 230 2.3.2.4 Resolução 1/2021 contra o Brasil 235 CONSIDERAÇÕES FINAIS. AS RAMIFICAÇÕES DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: RESPOSTAS ÀS NOVAS CRISES E PROJEÇÕES FUTURAS 241 REFERÊNCIAS
13 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 PREFÁCIO. AS CRISES DO SIDH E O PAPEL DO SIDH NAS CRISES Logo após assumir a presidência dos Estados Unidos pela segunda vez, Donald Trump emitiu uma série de Decretos Executivos (Executive Orders) que determinavam cortes drásticos em várias áreas, incluindo na diplomacia. Um dos cortes afetou diretamente a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), cuja metade do orçamento provém das contribuições do governo dos Estados Unidos, o país-sede da Organização dos Estados Americanos (OEA), entidade que abriga tanto a Comissão quanto a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Esse corte gerou uma crise existencial para a principal instituição de defesa dos direitos humanos no continente. Algumas semanas depois, o Conselho Permanente da OEA aprovou a Resolução n.º 1.277 (2535/25), destinando, de forma excepcional e temporária, uma quantia de quatro milhões de dólares “para proteger os recursos humanos afetados pela suspensão do financiamento dos Estados Unidos.” A Resolução afirmava que “este apoio financeiro é temporário e não constitui um compromisso permanente da Organização ou de seus Estados Membros de prorrogar contratos dos recursos.” Dessa forma, a Resolução não resolveu a crise, mas conseguiu suspendê-la, ao menos por um tempo.
14 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 Pouco depois, os EUA lançaram a candidatura de uma pessoa cujas visões sobre direitos humanos poderiam estar alinhadas com as da administração Trump. Desde 31 de dezembro de 2017, último dia do meu mandato na CIDH, cidadãos dos EUA não compõem mais o grupo de Comissários da instituição. Talvez, em vez de simplesmente matar a Comissão por falta de recursos, os EUA busquem capturá-la por meio da eleição de uma maioria ultraconservadora, por não dizer reacionária, que se opõe aos avanços conquistados nas últimas décadas, especialmente em relação aos direitos ambientais, dos povos indígenas e das pessoas LGBTQIA+. Essa não foi a primeira crise financeira enfrentada pela CIDH. Uma crise semelhante ocorreu em 2016, no início do meu mandato como presidente da Comissão. Naquela época, a CIDH optou por denunciar a crise financeira em uma tentativa de pressionar os países da região a apoiar o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH). Vale destacar que, até a data deste prefácio, a CIDH, embora continue negociando com o governo Trump, não se pronunciou publicamente sobre a decisão abrupta de cortar o apoio financeiro. Imagino que, se o fizesse, seria um posicionamento forte contra a inédita decisão dos EUA e as sérias consequências que ela terá para os direitos humanos dos excluídos do continente. Em 2016, a Comissão emitiu um comunicado claro e contundente. O título dizia: “Grave crisis financiera de la CIDH lleva a suspensión de audiencias e inminente pérdida de casi la mitad de su personal.” Ao mesmo tempo, em 23 de maio de 2016, publiquei um artigo no El País, sob minha presidência, intitulado Al borde del abismo: La Comisión Interamericana de Derechos Humanos se enfrenta a la peor crisis financiera de la historia. No entanto, essas crises financeiras não foram as únicas enfrentadas pela CIDH nos últimos anos. Na realidade, a crise tem sido um estado permanente para a Comissão. Entre 2011 e 2013, enfrentou uma crise política aguda, desencadeada por uma medida cautelar sobre o polêmico projeto da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, no Pará. O governo
15 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 brasileiro reagiu de maneira dura e, diria até, violenta, retirando seu candidato à CIDH, o embaixador e cortando o financiamento ao Sistema Interamericano. Os países da América Latina, menores em poder, viram uma oportunidade no vácuo criado pelo ataque brasileiro à Comissão e muitos buscaram preencher esse espaço. Durante dois anos, os órgãos políticos debateram formas de “reformar” ou melhorar o sistema, eufemismos para enfraquecer o sistema, tentando submetê-lo ao controle dos Estados. Ao estudar o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, é fundamental ir além das sentenças e relatórios que formam sua rica jurisprudência e analisar os aspectos políticos que sempre estiveram presentes e continuarão a fazer parte de sua realidade. Como a CIDH se adaptou e sobreviveu às crises anteriores? E como ela está respondendo às crises atuais? É justamente o que nos faz pensar o tema deste livro ao trazer à tona as crises passadas, mas também as novas, às quais o SIDH tem sido chamado a responder ao longo do tempo. No caso da crise da pandemia de covid-19, a situação é particularmente reveladora. Ao contrário das outras crises, a pandemia foi desencadeada por um choque exógeno, mas suas consequências e as reações do SIDH foram semelhantes às de crises anteriores. Elas nos ensinam sobre como o sistema responde à crise e como ele funciona diante de situações extremas. Na primeira parte do livro, o foco recai sobre as crises históricas que marcaram a América Latina e que, de alguma forma, ainda permanecem vivas. Essas “velhas crises” têm raízes profundas em períodos de autoritarismo, violência estatal e repressão institucional, refletindo modelos políticos e econômicos desiguais. O SIDH desempenhou um papel crucial na busca por justiça e reparação, especialmente por meio de mecanismos de justiça de transição, garantindo a memória, a verdade e a reparação das vítimas. Contudo, as respostas a essas crises revelaram-se limitadas quando se tratou de desmantelar as estruturas de desigualdade e exclusão, que persistem até mesmo em contextos democráticos.
16 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 A segunda parte do livro, por sua vez, aborda as “novas crises”, caracterizadas por sua natureza difusa e interconectada, alimentadas por fatores globais como a globalização neoliberal, o capitalismo financeiro e a destruição ambiental. Essas novas crises não se limitam a falhas nos sistemas democráticos; elas se manifestam como emergências que atravessam fronteiras nacionais e afetam principalmente os grupos mais vulneráveis da sociedade. A pandemia de covid-19 exemplifica uma crise que, embora tenha começado como uma emergência sanitária, revelou-se uma crise multidimensional, agravando desigualdades e expondo a fragilidade das estruturas de proteção estatais e privadas. Nesse contexto, o SIDH foi chamado a intervir, mas sua resposta demonstrou tanto a relevância quanto as limitações de suas ações diante de uma crise de tal magnitude. Embora este livro não trate diretamente da crise interna do SIDH desde 2016, é importante notar que essa é uma crise tanto interna quanto externa e deve ser encarada dentro do contexto mais amplo das crises que a região enfrenta. Para ser eficaz em suas respostas, o SIDH precisa primeiro superar sua própria crise interna, recuperando sua capacidade de intervenção frente aos desafios contemporâneos. Sua atuação não pode mais ser apenas reativa, focada na defesa contra retrocessos autoritários ou nas violências do passado. O SIDH precisa se renovar, adaptando suas estruturas, metodologias e práticas, desenvolvendo uma governança de direitos humanos que possa enfrentar de maneira ágil e integrada as crises regionais e globais, respondendo não apenas aos efeitos imediatos, mas também às suas causas profundas, antecipando riscos futuros. A presente obra propõe uma reflexão sobre como o SIDH deve se reinventar para lidar com essas novas configurações de crise, que são transnacionais e interdependentes, exigindo uma ação mais coordenada e proativa. O SIDH, para ser eficaz, precisa ser capaz de antecipar e mitigar as violências que surgem em um contexto global e regional fortemente influenciado pelos interesses privados e pela dinâmica predatória do capitalismo financeiro. A última parte do texto analisa o comportamento dos
17 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 atores privados durante a pandemia e como isso afetou grupos vulneráveis que buscaram a proteção do SIDH. Portanto, a atuação do SIDH deve ir além das respostas convencionais e incorporar uma perspectiva mais ampla, capaz de lidar preventivamente com as complexas crises ecológicas, sanitárias, econômicas e políticas do século XXI. Nesse sentido, para qualquer reforma do sistema ou para a implementação das mudanças estruturais necessárias que permitam ao SIDH enfrentar as múltiplas crises atuais, é imprescindível o comprometimento dos Estados da região, tanto em termos políticos quanto financeiros. Infelizmente, esse compromisso tem sido uma falha significativa no Sistema Interamericano. Em grande parte, essa falta de apoio resulta da relação ambígua que os Estados têm com o Sistema. Enquanto afirmam apoiar o SIDH, em momentos de crise, seja financeira ou política, eles minimizam a gravidade da situação, evitam assumir a sua responsabilidade, e/ou adotam medidas superficiais e ineficazes. No fim das contas, o verdadeiro obstáculo é a ausência de vontade política. Uma compreensão adequada e crítica do Sistema, assim como de sua relação com os órgãos políticos que o limitam, apontaria que para enfrentar as crises alheias, ele primeiro precisa lidar com suas próprias crises. Em suma, este livro não se limita a analisar as crises do passado, mas propõe uma nova abordagem frente às novas crises. Para enfrentá-las de forma eficaz, é crucial que o SIDH – com o apoio necessário dos governos do hemisfério – recupere sua força interna, se renove e assuma um papel mais ativo e integrado na proteção dos direitos humanos, especialmente em tempos de emergências globais. Só assim o SIDH poderá cumprir sua missão de garantir e transformar a dignidade humana nas Américas. Por fim, ressalto que esta obra é claramente o fruto de um esforço coletivo que merece ser amplamente reconhecido. Ela demonstra de forma inequívoca que os investimentos públicos em pesquisa de qualidade não só devem ser preservados, mas também vigorosamente incentivados. Sua relevância é tanto
18 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 teórica quanto prática, oferecendo uma reflexão intertemporal e intergeracional sobre os desafios que o futuro reserva para os direitos humanos na região das Américas. New Haven, Connecticut, 6 de maio de 2025. James Cavallaro Professor Visitante, Yale University Diretor Executivo, University Network for Human Rights (UNHR) Ex-Comissário e Ex-Presidente, Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)
19 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 APRESENTAÇÃO A pandemia trouxe novos desafios até então inimagináveis para os contextos sociais “normalizados” nas últimas décadas. Compreender seu alcance e as suas consequências no curso do processo de deflagração da emergência sanitária gerada constitui-se como uma tarefa, ao mesmo tempo, desafiadora e imprescindível. O que o livro que ora se apresenta ao campo das ciências sociais aplicadas e, mais especificamente, ao campo do Direito faz é enfrentar esse desafio, tendo seus pesquisadores se dedicado a, praticamente em tempo real, buscar informações, dados e comandos normativos, organizando-os em um formato reflexivo bastante profundo e inovador. Sem se deixar enredar apenas pela aparência de novidade da crise que se impôs ao mundo em 2020, os autores conseguem mostrar os vínculos entre as novas e velhas crises em um intenso debate que conecta na literalidade de suas palavras: “degradação ecológica, colapso de sistemas de saúde, necropolítica e desigualdade estrutural”. Como imaginar as condições operativas de defesa e proteção de seres humanos em um cenário que fragiliza ainda mais a condição de milhares de pessoas já vulnerabilizadas pelos processos de deterioração das condições institucionais de defesa e proteção de direitos humanos? Preocupadas com essa questão de fundo, os autores problematizam a possibilidade de utilização dos aportes teóricos
20 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 da justiça de transição para o enfrentamento da nova crise. O recorte geográfico da análise é a América Latina e, portanto, a reflexão sobre o Sistema Interamericano de Direitos Humanos e suas condições jurídicas e institucionais de mobilização estrutural de um tema como o da justiça de transição, que protagonizou em muitos momentos das últimas décadas a agenda de direitos humanos do próprio sistema regional, foi uma ousadia necessária deste grupo de pesquisadores. Os resultados não poderiam ser mais promissores. Enfrentando os limites teóricos das categorias vinculadas à justiça de transição para o tratamento da crise pandêmica, os autores vão além dos limites definidos pelo quadro teórico tradicional e apontam para uma teoria da transitologia como uma contribuição imprescindível ao avanço do tratamento de questões que envolvem violações de direitos humanos em crises que, velhas ou novas, se entrelaçam por suas raízes estruturais. Como um possível mecanismo disponível no Sistema Interamericano de Direitos Humanos para a contribuição do debate da transitologia os autores indicam de forma inovadora o standard da devida diligência, valorizando a dimensão da prevenção como uma categoria que deve ganhar protagonismo no debate da justiça de transição. Por fim, o reconhecimento dos limites do Sistema Interamericano de Direitos Humanos para crises como a instaurada pela pandemia de covid-19 não limitou a análise dos autores a uma crítica sobre as condições do alcance desse sistema regional, mas indicou a sua imprescindibilidade, diante da qual, os limites devem ser superados e o avanço e o aperfeiçoamento dos mecanismos institucionais de proteção de direitos humanos devem seguir sendo a parte mais importante dos compromissos políticos e jurídicos assumidos na região. Não há dúvidas de que a importância deste livro está em seu conteúdo, mas sua contribuição vai além das possibilidades oferecidas aos debates acadêmicos abertos com os resultados apresentados e alcança um lugar muito perto do que se pode desejar como o ideal de se fazer pesquisa. A construção des-
21 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 te livro constituiu-se como um rico e complexo processo que envolveu trabalho coletivo, acionamento de redes de pesquisa nacionais e internacionais, mobilidade docente e discente, engajamento de estudantes egressos e, sobretudo, muito comprometimento e seriedade por parte de todos os pesquisadores. Que o conteúdo deste livro nos permita avançar nos temas de transitologia e proteção de direitos humanos na América Latina e que a experiência de sua construção nos inspire a fazer mais pesquisas colaborativas com coragem e horizontalidade. Porto Alegre, 19 de maio de 2025. Profa. Dra. Roberta Camineiro Baggio
23 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 CONSIDERAÇÕES INICIAIS. AS RAÍZES DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: REFLEXÕES SOBRE O PASSADO E A EMERGÊNCIA DAS NOVAS CRISES Há raízes profundas nas crises que nos atravessam. Algumas são antigas, já conhecidas, estruturadas em formas de dominação, autoritarismo e violência estatal. Outras parecem emergentes, inesperadas, como os ramos novos de uma árvore que cresce de forma desordenada sob o impacto de ventos cruzados: pandemias, desastres ambientais, desigualdades agravadas, entre diversas outras. Este livro parte da premissa de que há um entrelaçamento entre essas raízes e suas ramificações, e que compreendê-las exige lançar luz sobre a genealogia das crises e sobre os modos possíveis de justiça em tempos de transição. No centro dessa reflexão está uma disputa sobre como nomeamos a era em que vivemos. O termo antropoceno tem ganhado destaque para designar a fase geológica atual em que a ação humana se tornou força de transformação planetária. No entanto, essa concepção homogeneizante, que responsabiliza a humanidade como um todo, tem sido amplamente questionada por abordagens que identificam não o “ser humano” em si, mas o sistema capitalista global, extrativista e neoliberal, como motor das destruições em curso. Surge então a proposta do capitaloceno, que aponta as raízes estruturais dessas crises na lógica da
24 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 acumulação, da exploração e do descarte – inclusive de vidas humanas – em uma mercantilização dos corpos. As emergências sanitárias, como a pandemia de covid-19, são expressão direta desse contexto. Elas não surgem no vazio, tampouco representam eventos isolados. São, ao contrário, manifestações de uma crise sistêmica que entrelaça a devastação ambiental, a precarização da vida e a fragilidade das instituições públicas diante da lógica neoliberal global. A pandemia, portanto, não foi um raio em céu azul. Foi, antes, a ramificação visível de raízes profundas que conectam degradação ecológica, colapso de sistemas de saúde, necropolítica e desigualdade estrutural. No continente latino-americano, esse evento extraordinário escancarou o ordinário da violência social: governos erráticos, decisões irresponsáveis, omissões deliberadas e violações massivas de direitos humanos. Tanto atores estatais quanto privados atuaram – ou deixaram de atuar – de maneira a intensificar os efeitos da crise sanitária. É nesse contexto de crises, velhas e novas, que emerge a pergunta central desta obra: é possível acionar os mecanismos da Justiça de Transição, historicamente associados à superação de regimes autoritários, para responder às violações produzidas durante a pandemia de covid-19? A Justiça de Transição, tradicionalmente, enraíza-se em contextos de ruptura com ditaduras ou conflitos armados. Seus pilares – memória e verdade, justiça, reparação e garantias de não repetição – foram inicialmente concebidos para lidar com o passado autoritário. Mas, e quando o presente se mostra igualmente violento? E quando as ramificações da injustiça seguem crescendo em meio a democracias formalmente instituídas, mas esvaziadas de compromisso com a dignidade humana? Para essa travessia conceitual e metodológica, esta obra adota como farol interpretativo a fenomenologia hermenêutica. A partir dela, entende-se que toda investigação parte de uma condição situada no mundo, e que a compreensão do fenômeno da crise – e das formas de justiça que dela decorrem – exige
25 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 uma escuta sensível às experiências vividas, aos sentidos históricos e às possibilidades de projeção de um futuro mais justo. Neste horizonte investigativo, esta obra é resultado do projeto de pesquisa Sindemia1 e Direitos Humanos: mecanismos transicionais, responsabilização estatal e corporativa2, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), na área de concentração em Direito Público e na linha de pesquisa Hermenêutica, Constituição e Concretização de Direitos, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Complementarmente, os resultados aqui apresentados foram enriquecidos por dois projetos que dialogam diretamente com a temática: o IRP ALCOM – Contributions de l’Amérique latine à l’esquisse d’un droit commun, vinculado ao CNRS – Centre National de la Recherche Scientifique/Université Paris 13, e o projeto Crises Multissetoriais e Sistêmicas4, financiado no âmbito do programa CAPES-COFECUB. Esses três estudos convergiram em um esforço comum de compreensão sobre como o SIDH 1 Para Horton R., o termo sindemia descreve a interação entre a pandemia de covid-19 e doenças preexistentes, como as doenças crônicas não transmissíveis, intensificadas por desigualdades sociais e estruturais. Esse conceito sugere que a crise de saúde gerada pela covid-19 não é um evento isolado, mas o resultado de múltiplas condições interconectadas que, juntas, exacerbam desigualdades e criam um quadro complexo de saúde pública. Optamos por utilizar o termo sindemia para o título do projeto vinculado ao CNPq, devido à sua conceituação mais abrangente, que engloba as múltiplas variáveis implicadas nas diferentes análises. No entanto, como a OMS adotou o termo “pandemia”, escolhemos utilizá-lo neste livro para manter consistência com a linguagem adotada pela organização internacional. HORTON, R. Offline: covid-19 is not a pandemic. The Lancet, v. 396, n. 10255, p. 874, 26 set. 2020. Disponível em: https://www.thelancet. com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)32000-6/fulltext. Acesso em: 29 abr. 2023. 2 Projeto desenvolvido com o apoio do CNPq, intitulado Sindemia e Direitos Humanos: mecanismos transicionais, responsabilização estatal e corporativa, sob a coordenação da Professora Jânia Maria Lopes Saldanha. 3 Projeto IRP ALCOM – Contributions de l’Amérique latine à l’esquisse d’un droit commun. Fomentado pelo Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) da França, desenvolvido sob a coordenação da Professora Kathia Martin-Chenut. 4 Projeto Crises Multissetoriais e Sistêmicas. Coordenado pelo Professor Anderson Vichinkeski Teixeira, financiado no âmbito do Edital 32/2022.
26 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 respondeu à pandemia de covid-19 em sua atuação normativa, administrativa e jurisdicional. Mais do que mapear essa atuação, o trabalho procurou identificar se – e de que forma – os mecanismos clássicos da Justiça de Transição foram (ou podem ser) mobilizados frente às novas crises. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) tem papel central nesse debate. A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), em conjunto com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), consolidaram uma jurisprudência robusta emmatéria de Justiça de Transição, especialmente no enfrentamento das heranças autoritárias do século XX na América Latina. Contudo, com a eclosão da pandemia, foram novamente convocadas a atuar, agora diante de novas violações, cometidas em nome da urgência, da atipicidade ou da simples negligência institucional. Para fins analíticos, este livro adota a distinção entre “velhas” e “novas” crises. As velhas crises são entendidas como aquelas de natureza local ou regional, enfrentadas com respostas igualmente locais ou regionais. O paradigma dessas crises é o período das ditaduras no Cone Sul, superadas – ao menos formalmente – por meio da adoção de mecanismos de Justiça de Transição e da consolidação do Estado Democrático de Direito. Já as novas crises, em contraste, são de alcance global, resultado da aceleração da globalização, da financeirização da vida e da interdependência sistêmica. São crises que ultrapassam fronteiras e, por isso, demandam respostas igualmente transnacionais. Diante desse cenário, a Justiça de Transição precisa ser repensada, reestruturada e expandida – suas raízes são essenciais, mas suas ramificações precisam acompanhar as novas formas de violação e sofrimento humano. Nesse ponto, o livro incorpora também reflexões em estágio inicial de desenvolvimento, como a hipótese do standard da devida diligência enquanto possível ramificação contemporânea dos clássicos pilares da Justiça de Transição. Ainda que não constitua o foco central desta obra, essa perspectiva será brevemente delineada, com vistas a sinalizar caminhos para inves-
27 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 tigações futuras. Em um cenário em que a prevenção desponta como elemento tão fundamental quanto a reparação, considerar a devida diligência como vetor antecipatório – especialmente diante da atuação de atores públicos e privados – revela-se uma via promissora para o fortalecimento de respostas jurídicas frente às novas crises. A análise se desenvolve em dois grandes ramos investigativos. O primeiro, de natureza teórica, revisita a noção de crise a partir de autores como Reinhart Koselleck, Edgar Morin, Paul Ricœur e Aldo Mascareño, propondo uma leitura transdisciplinar que articule as chamadas velhas crises, marcadas por autoritarismos e repressões diretas, com as novas crises, caracterizadas por uma governança difusa, por vezes omissa, por vezes excessiva. O segundo ramo, de caráter empírico e analítico, volta-se à atuação do SIDH frente às novas crises desencadeadas ou agravadas pela pandemia de covid-19. Nessa parte, o livro examina criticamente as ações e omissões de atores públicos e privados, investigando como essas condutas impactaram a proteção de direitos humanos na América Latina. A análise inclui o levantamento e estudo detalhado das medidas cautelares emitidas pela CIDH entre 2020 e 2023, com menção à pandemia, observando-se tanto os conteúdos normativos explicitamente formulados quanto os elementos que, à luz da jurisprudência interamericana, podem ser compreendidos como expressões – ou potenciais expansões – dos quatro clássicos pilares da justiça transicional. Afinal, não seria este o momento de questionarmos a necessidade de novos modelos que respondam melhor aos desafios do futuro?5 Raízes e Ramificações é, portanto, mais do que 5 Em obra sobre a sociedade internacional do risco, que aborda os riscos, as vulnerabilidades e a necessidade de uma resposta global do Direito, o professor e jurista Ioannis K. Panoussis, ao considerar o modelo clássico de responsabilidade estatal consagrado pelos instrumentos protetivos de direitos humanos, indaga se estes são suficientes e se “não seria o momento de questionarmos sobre a emergência de outros modelos que possam responder melhor aos desafios futuros?” Trecho original: N’est-il pas temps de s’interroger sur l’émergence d’autres modèles pouvant mieux répondre aux enjeux futurs? PANOUSSIS, Ioannis K. Le droit
uma metáfora. É uma metodologia de leitura das crises contemporâneas e um convite à revisão crítica das ferramentas jurídicas que temos – ou que precisamos cultivar – para enfrentá-las. A Justiça de Transição, enquanto campo teórico e prático, pode (e talvez deva) estender seus galhos para além dos marcos do passado autoritário. Pode, neste novo tempo, servir também como instrumento para responder às violações de direitos em contextos de crise sanitária, ambiental e democrática. Pode, enfim, ser adubo para um futuro mais justo, que se comprometa com a memória, mas também com a transformação. international des droits de l’Homme à l’épreuve de la «société internationale du risque»: Risques, vulnérabilités et réponse globale du droit. 2023. Rapport (Habilitation à Diriger des Recherches) – Université Toulouse Capitole, Toulouse, França, 2023.
29 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 PARTE 1 – CRISES, VELHAS CRISES E VELHAS RESPOSTAS: AS RAÍZES DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO Existe uma vasta literatura que trata do tema “crise”. Essa palavra faz parte da linguagem contemporânea para se referir a distintos fenômenos, como crise econômica, crise ecológica, crise democrática, crise social, crise de segurança, crise migratória, crise política, crise familiar, entre outras. A lista é longa e praticamente inesgotável. Para compreender o que se entende por “velha crise”, percorremos um caminho que nos levou a identificar, de forma mais ampla, aquilo que, sob diferentes perspectivas teóricas, caracteriza a “crise” (1.1). Em seguida, empreendemos um esforço analítico para delimitar as chamadas “velhas crises” (1.2). Diante dos desafios e riscos evidenciados pela pandemia, interessou-nos saber se os efeitos por ela gerados, especialmente no que se refere à atuação de atores públicos e privados, poderiam ser adequadamente enfrentados por meio dos mecanismos da Justiça de Transição. Por essa razão, a última seção desta primeira parte dedica-se a essa discussão (1.3). 1.1 CRISE: UMA PERSPECTIVA MULTIFORME A pergunta que rege o desenvolvimento do presente tópico é: o que significa crise? Por certo que se cogita uma res-
30 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 posta que seja válida para o desenvolvimento da presente obra, mas que não necessariamente se revele como uma resposta universal. Ainda que a literatura seja vasta e estendida no tempo, a opção foi percorrer quatro vias teóricas, sem a pretensão de esgotar o tema. Quanto à primeira, buscamos em Reinhart Koselleck algumas pistas interpretativas (1.1.1). Já Edgar Morin, autor dedicado a temas complexos, oferece uma perspectiva distinta sobre a crise (1.1.2), mais afinada com a teoria sistêmica de Aldo Mascareño (1.1.4). Por fim, o fenômeno da crise pode ser interpretado também a partir da articulação entre experiência e expectativa, conforme a leitura proposta por Paul Ricœur (1.1.3). 1.1.1. Entre crítica e crise: alguns aportes de Koselleck Em sua obra póstuma Histórias de Conceitos, que reuniu diferentes textos produzidos ao longo de sua vida, Reinhart Koselleck afirma sobre o uso inflacionado do conceito de crise no período contemporâneo, pois ele é empregado para descrever diferentes circunstâncias das mais diversas áreas do conhecimento humano. O autor compreende que antes de ser uma situação de crise generalizada, trata-se mais de uma utilização difusa do conceito.6 Nessa perspectiva, como ponto de partida, é preciso definir o significado de crise. Evidentemente, busca-se uma resposta que se aplique ao desenvolvimento do presente trabalho, embora não se pretenda estabelecer uma resposta de caráter universal. Como premissa, dado o problema que a equipe de pesquisadores buscou responder, adota-se a compreensão de que é possível caracterizar violações massivas de direitos humanos a partir de um contexto de crise. A crise não surge porque houve alguma espécie de declínio de uma condição ideal de observação dos direitos humanos que fosse diferente do quadro de hoje. Reconhecer isso, seria ignorar as mazelas e violações 6 KOSELLECK, Reinhart. Histórias de conceitos: estudos sobre a semântica e a pragmática da linguagem política e social. Tradução Marcus Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto, 2020. p. 213.
31 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 massivas que também ocorreram no passado. O reconhecimento do contexto de crise deriva de uma certa definição que se sedimenta a partir de um conjunto de autores considerados. Podemos, então, começar o percurso com Reinhart Koselleck. Em 1954 ele publicou um livro farol, resultante de sua tese de doutorado, intitulado Crítica e crise: patogênese do mundo burguês. Na obra, ele demonstrou que a crise que desembocou no surgimento do Estado moderno somente existiu enquanto tal porque foi precedida da crítica moral dirigida contra os detentores do poder no período pré-revolucionário, na França. Numa extensa nota de rodapé7 do livro mencionado Koselleck afirma que a palavra “kritic” tem em comum com a palavra “krise” a origem grega, ambas derivadas do radical “kri”. Koselleck destacou que “crise” significa, em primeiro lugar, separação e luta mas, também, decisão no sentido de um julgamento – um ato de julgar – , de uma recusa definitiva que, no tempo em que sua obra foi escrita, também era significado que pertencia à crítica. Desse ponto de vista a palavra crise tinha um emprego jurídico, no sentido de processo e de uso no tribunal. Entretanto, mais adiante Koselleck disse que a palavra “crítica” como ato de julgar, de proferir um juízo dominou a vida pública, enquanto que “crise” como ordem jurídica no sentido grego, desaparece. Ainda, na definição empregada na língua helênica, a palavra crise descrevia uma situação de alternativas extremas, sem possibilidade de revisão, tais como “sucesso ou fracasso, justiça ou injustiça, vida ou morte, por fim, salvação ou perdição”.8 No latim a palavra “crise” aparece no mundo médico9 como julgamento, nada mais do que uma apropriação do sentido usado no mundo jurídico. Assim, durante o período medieval a palavra restou restrita a esse campo e designou o estágio crítico e decisivo de uma doença para o qual não havia, ainda, 7 KOSELLECK, R. Crítica e crise. Uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de janeiro: Contraponto, 1999. [E-book], local 3099 a 4063. 8 KOSELLECK, 2020, op. cit., p. 214. 9 KOSELLECK, 2020, op. cit., p. 214-215.
32 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 uma decisão definitiva sobre a salvação ou a morte. Segundo Koselleck, esse sentido da palavra se manteve do século XVIII até o século XX. Já, no âmbito da teologia, precisamente no novo testamento, identifica-se um sentido associado a juízo de Deus, perspectiva que também é marcada por uma alternativa ou desfecho irretratável. Tanto o juízo teológico como o referente à prática medicinal coexistiram da antiguidade românica até a primeira modernidade10. A partir de então, Koselleck11, na obra História de Conceitos, publicada nos anos 70 do século XX, identificou três opções semânticas para a palavra crise: a) processual; b) temporal; c) inflexiva. No primeiro sentido12 – processual – , tem-se um conceito segundo o qual interpreta-se a história como uma situação de crise permanente. Essa perspectiva concebe o próprio desenvolvimento histórico como uma espécie de julgamento.13 É possível identificar aqui uma espécie de secularização do juízo, que não é mais protagonizado por um deus, mas pela própria história. Esse primeiro sentido pode ser associado ao pensamento dos liberais do século XVIII para justificar a legitimidade moral de suas ações revolucionárias ou, ainda, ao pensamento imperialista e darwinista, considerando que nessa perspectiva a prevalência do mais forte era o indicativo de que a justiça histórica se constituía a partir da dominação. A compreensão do mundo como um tribunal do próprio mundo tem como consequência 10 BECK, Ulrich. A sociedade de risco. Rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2002. Para Beck ela teve início no século XVII, coincidindo com a Revolução Industrial e o surgimento do capitalismo. Teve fim no início do século XX para dar lugar ao que ele denominou de “modernidade reflexiva”. 11 KOSELLECK, 2020, op. cit., p. 218 12 CATROGA, Fernando. A história do mundo como tribunal do mundo. Sæculum – Revista de História, João Pessoa, n. 21, jul./dez. 2009. Disponível em: https:// periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/srh/article/view/11468/6580. Acesso em: 1 maio 2024. 13 Essa abordagem se estabelece a partir de uma frase de Friedrich Schiller “Die Weltgeschichte ist das Weltgericht”, que surge como um verso de Resignation Eine Phantasie.
33 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 que cada situação estará marcada pela mesma necessidade de decisão.14 O segundo sentido15 – temporal – é o de um limiar epocal, situação onde muitos conflitos se entrelaçam de forma a projetar uma conjuntura nova a partir da implosão da realidade anterior. Aqui é possível pontuar a concepção de progresso, no sentido que se estabelece a partir do século XVIII16, bem como o conceito econômico de crise, que descreve situações onde o suposto equilíbrio próprio do mercado, entre variáveis como a oferta e a demanda, a produção e o consumo ou a circulação de dinheiro e a de bens fosse perturbado.17 Contudo, é possível identificar uma certa aporia nessa perspectiva de progresso, pois ao mesmo tempo que ela exalta o avanço das novas técnicas, há uma preocupação com as implicações morais ou o potencial de risco que é inerente à tecnologia. A título de exemplificação dessa relação paradoxal, Koselleck menciona a obra de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e a categoria de perfectibilidade que pressupõe a possibilidade de aperfeiçoamento da técnica por parte do ser humano de acordo com a vicissitudes da história. Em outras palavras, a possibilidade de que o ser humano esteja “condenado a avançar, a concentrar todos os seus esforços na tentativa de dominar as forças da natureza, a erguer no seu dia a dia andaimes civilizatórios, a organizar-se politicamente para poder viver e desenvolver sua indústria com o crescente uso da razão” mas, em contrapartida, há “a perda da inocência natural, a desintegração dos costumes e a instrumentalização da linguagem com prejuízo para a unidade entre o sentimento e a razão. O progresso, portanto, gera decadência”. O terceiro sentido18 – inflexivo – se refere a um grande ponto de inflexão, onde o rumo de maior deterioração dos acon14 KOSELLECK, 2020, op. cit., p. 220. 15 KOSELLECK, 2020, op. cit., p. 221 16 KOSELLECK, 2020, op. cit., p. 221 17 KOSELLECK, 2020, op. cit., p. 221 18 KOSELLECK, 2020, op. cit., p. 223.
34 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 tecimentos poderia ser bruscamente alterado a partir de uma determinada conjuntura, isto é, a crise seria o prenúncio de um processo revolucionário. Nesse modelo, “a crise em que nos encontramos num dado momento como a grande e única decisão final, depois da qual a feição futura da história será complemente diferente”.19 Trata-se de se situar em um “ponto absolutamente mais baixo da história”20 e projetar a partir desse recorte “a reviravolta rumo à redenção”.21 Apesar da proposição desse terceiro modelo como uma referência de projeção idealizada, há a ressalva de que “em vista dos meios de autodestruição atualmente disponíveis, já não podemos descartar a conclusão de que ele tem todas as chances de se realizar”.22 Aqui, por exemplo, situam-se os representantes da corrente jacobina23 da Revolução Francesa ou mesmo o viés marxista de que a última crise do capitalismo será sucedida pela libertação da dominação e abolição das diferenças de classe. Ao comentar os sentidos24 desenvolvidos por Koselleck, em Crítica e Crise, Paul Ricœur25 – ao qual voltaremos – aponta que o exercício da crítica, que consiste em última análise na ap19 KOSELLECK, 2020, op. cit., p. 222. 20 KOSELLECK, 2020, op. cit., p. 222. 21 KOSELLECK, 2020, op. cit., p. 223. 22 KOSELLECK, 2020, op. cit., p. 218. 23 Formada por um grupo político revolucionário que teve papel central na Revolução Francesa. 24 Na abordagem realizada por Ricœur existem referências que se aproximam dos sentidos identificados na obra póstuma, mas os sentidos indicados sobrepõem- -se na análise dos processos revolucionários burgueses do século XVIII. O papel da crítica também pode ser identificado na introdução de A Crítica da Razão Pura de Kant: “Nossa época é a verdadeira época da crítica a que tudo tem de submeter-se. A religião, por meio de sua sacralidade, e a legislação, por meio de sua majestade, querem em geral escapar a ela. Desse modo, porém, levantam contra si uma legítima suspeita e não podem aspirar ao sincero respeito que a razão dedica apenas àquele que pôde suportar o seu livre e público teste”. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 4. ed. Tradução: Fernando Costa Mattos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. p. 19. 25 RICŒUR, Paul. La crise: un phénomène spécifiquement moderne? Revue de Théologie et de Philosophie, Troisième série, v. 120, n. 1, p. 1-19, 1988a. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/44356679. Acesso em: 1 maio 2024. p. 4.
35 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 tidão de discernir entre o certo e o errado a partir de esforço de uma dada racionalidade,26 foi substituído pela crise. Isso ocorre quando a compreensão de que um progresso interminável e contínuo – referido no segundo sentido moderno descrito acima – provoca um juízo constante a respeito das decisões políticas necessárias. O discernimento dos rumos a serem tomados ocorre com o julgamento dos fundamentos que decorrem da filosofia da história. Dessa forma, o ponto necessário de mudança brusca dos rumos da história, para um futuro necessariamente melhor, ocorreria como uma espécie de juízo entre os detentores da crítica contra os tiranos, responsáveis por uma certa situação de decadência. O juízo, traduzido não raras vezes em guerra civil, seria um passo necessário para o desenvolvimento da crença em um progresso contínuo da humanidade.27 Nesse sentido, “mesmo que se recorresse à violência, a vitória iria coroar a inocência”.28 Em linhas gerais, o exercício da crítica, como racionalidade própria dos indivíduos, seria o critério último do juízo histórico necessário para que houvesse a redenção da história traduzida em progresso. O tensionamento da oposição deste juízo último frente às instituições do presente gera o que se reconhece como o cenário de crise. É importante considerar que esse sentido político de crise surgiu no tempo das guerras religiosas na Inglaterra do século XVII. Nesse caso o conceito médico foi transposto para a política. A doença atingiu o corpo do Estado. O termo reapareceu no final do século XVIII na França e nos Estados Unidos durante as guerras por independência. Koselleck afirmou que a ruptura dos americanos com a metrópole representou além da luta, uma crise. Mas ele esclareceu o sentido que o termo crise adquiriu, ou seja, para o Estado, a guerra civil decorrente dos movimentos de independência era uma crise. Para o cidadão, era um tribunal. 26 KOSELLECK, 1999, op. cit., p. 99. 27 RICŒUR, 1988, op. cit., p. 5. 28 KOSELLECK, 1999, op. cit., p. 157.
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