102 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 reza do Comércio de Grãos189 de Louis-Paul Abeille, de 1763. Em sua missiva destinada ao Conselho de Comércio da França, o autor defendia a premissa associada ao laissez-faire, de forma que a melhor maneira de regular os preços dos grãos era o Estado permitir a concorrência entre os agentes do mercado, sem qualquer intervenção. Essa lógica pressupunha que, ao buscar satisfazer exclusivamente seus próprios interesses, os agentes econômicos acabariam por normalizar a oferta de grãos, uma vez que optariam por produzir os grãos que estivessem com maior escassez, e, por consequência, com um preço de venda mais elevado. Por outro lado, evitariam a produção dos grãos que estivessem com o menor preço e, portanto, com uma demanda menor. Contudo, essa dinâmica de normalização carrega consigo uma exceção necessária. A ausência de critérios comuns gera uma produção descoordenada em relação à demanda real. Segundo a leitura que Foucault faz da carta de Abeille, isso implica que: “não haverá mais escassez de alimentos em geral, desde que haja, para toda uma série de pessoas e para toda uma série de mercados, uma certa escassez, um certo aumento de preços, uma certa dificuldade em comprar trigo, uma certa fome, como consequência. E, finalmente, é bem possível que algumas pessoas morram de fome.”190 A descrição dessa dinâmica indica que a normalidade do sistema produtivo pressupõe uma oscilação de ganho entre os agentes que podem escolher o que produzir e, em contraponto, essa mesma oscilação afeta determinados grupos de pessoas que ficam expostos a privações de elementos existenciais basilares, como o alimento. Isto é, sob essa perspectiva, a segurança – normalidade – das relações de mercado, para uns, só poderá 189 ABEILLE, Louis-Paul. Lettre d’un négociant sur la nature du commerce des grains. Palerme: [s. n.], 1763. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1053 624z/f1.item. Acesso em: 14 fev. 2025. 190 FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população – curso dado no Collège de France (1977-1978). 2. ed. Tradução Carlos Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2023. p. 55-56.
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