105 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 levam a reconfigurações, não podem ser explicadas de maneira direta pelas dinâmicas próprias do capitalismo. O que está em jogo é uma crise mais ampla, que atinge o próprio dispositivo geral de governamentalidade instaurado no século XVIII199. Seria, portanto, pertinente investigar historicamente essas rupturas no modo de governar que se consolidou a partir daquele período. A economia política surge nesse contexto como uma estrutura teórica que organiza intelectualmente e articula leis naturais que orientam tanto a atuação do Estado quanto os limites jurídicos à ação governamental – constituindo, portanto, uma forma de saber-poder. Trata-se aqui de reconstruir a trajetória dos principais fundamentos do liberalismo como forma de governo, explorando seus desdobramentos, suas tensões e suas crises internas – já que é precisamente a partir dessas fissuras que o neoliberalismo emerge como nova possibilidade de governar – e governar durante uma pandemia de covid-19, por exemplo. Isso nos remete ao problema da arbitragem liberal, ao gerenciamento de riscos e à implementação de mecanismos de segurança, passando pelos controles disciplinares, pelas políticas de intervenção, pelo controle da liberdade e suas crises – isto é, pelos mecanismos de defesa da liberdade e pela manutenção do funcionamento e da legitimidade do princípio da utilidade. De todo modo, algo como o neoliberalismo se torna possível. Se a álgebra da utilidade pode ser calculada por indivíduos e instituições e funciona como uma regra básica para o mercado, é porque essa matemática de origem psicológica passou a ser vista como algo determinante e natural na vida em sociedade. Vivemos em uma sociedade onde o mercado foi completamente naturalizado, penetrando profundamente nas formas de vida. Essa naturalização é tão abrangente que torna o princípio da utilidade algo mensurável e aplicável às mais diversas esferas 199 FOUCAULT, Michel. The birth of biopolitics. Lectures at the Collège de France, 1978-1979. Londres: Palgrave Macmillan, 2011b. p. 70
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