Raízes e ramificações: a Justiça de Transição na América Latina em tempos de covid-19

106 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 da vida social, seja pública ou privada, geralmente traduzidas em termos de riqueza abstrata, além da conexão discursiva entre utilidade e prazer200. Esse tipo de governo, inserido no neoliberalismo, precisa conhecer os mecanismos que regem sua própria área de atuação. Posteriormente ao processo de compreendê-los, deve também respeitá-los. No entanto, isso não quer dizer que ele respeita, de fato, a liberdade dos indivíduos ou seus direitos fundamentais201. O que isso significa é que o governo dispõe de um conhecimento rigoroso, contínuo e detalhado sobre o que se passa na sociedade, no mercado e na economia. Sob essa lógica, a limitação do poder estatal não se dá com base na liberdade individual ou em definições jurídicas de direitos, mas sim a partir de dados e análises econômicas que devem ser levados em consideração. Em resumo: o limite do Estado é definido por evidências técnicas e não pela liberdade do sujeito. A importância dos mecanismos de justiça de transição pode ser mais bem compreendida quando inserida no quadro teórico foucaultiano sobre as transformações na arte de governar. A partir da genealogia do liberalismo desenvolvida por Michel Foucault, torna-se possível compreender o neoliberalismo não apenas como uma ideologia econômica, mas como uma racionalidade governamental que redefine os modos de exercício do poder, deslocando os limites da ação estatal do campo dos direitos para o campo da gestão. Nesse contexto, os mecanismos de justiça de transição – como comissões da verdade, reformas institucionais e políticas de reparação – tornam-se dispositivos centrais na reorganização da legitimidade do Estado após períodos de exceção, pois operam como instrumentos de racionalização do governo em momentos de crise. Entretanto, como observa Foucault, o governo neoliberal não se limita por princípios morais ou jurídicos universais, mas 200 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 20. ed. Tradução: Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 165-186. 201 FOUCAULT, 2011b, op. cit., p. 61.

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