Raízes e ramificações: a Justiça de Transição na América Latina em tempos de covid-19

107 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 por evidências técnicas e análises econômicas202, o que implica que mesmo a justiça transicional pode ser moldada por uma lógica de utilidade e eficiência. Esse deslocamento é particularmente problemático quando leva à neutralização dos conflitos sociais em nome da estabilidade, algo que Nancy Fraser identifica como uma das marcas do neoliberalismo: a conversão de demandas por justiça em questões de administração técnica e gestão apolítica203. Assim, os mecanismos de justiça de transição, ao operarem sob essa racionalidade, podem ter sua potência emancipatória esvaziada, tornando-se instrumentos de redistribuição sem reconhecimento – ou seja, formas de reparar simbolicamente sem transformar as condições estruturais de exclusão e violência. Como também advertiu Ruti Teitel204, há o risco de a justiça de transição ser capturada por racionalidades que priorizam reconciliações formais e narrativas de encerramento, em detrimento de transformações substantivas. Sob o prisma foucaultiano, isso revela não apenas uma técnica de poder, mas a atualização de uma governamentalidade que, ao lidar com traumas históricos, transforma a memória em variável da governança. Reconhecer esse deslocamento é fundamental para resgatar o potencial ético e político dos mecanismos de transição diante de um governo que, cada vez mais, se legitima pelo saber técnico, pela naturalização do mercado e pela suposta neutralidade de seus instrumentos. O que nos inspira, portanto, é saber se os efeitos deflagrados pela covid-19 e o tratamento que os Estados dispensaram a eles, podem ser inseridos na compreensão de novas crises. Para isso, é determinante entender que nas velhas crises como Koselleck demonstrou, o que estava em jogo era a soberania estatal e que nas novas crises, como refere Foucault, o que muda é justamente a arte de governar. Nesse último caso, a gestão de corpos 202 FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica: curso no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2011a. p. 61. 203 FRASER, Nancy. O velho está morrendo e o novo não pode nascer. Tradução: Lucas Bambozzi. São Paulo: Autonomia Literária, 2020. 204 TEITEL, Ruti G. Transitional Justice. Oxford: Oxford University Press, 2000.

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