54 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 a saber: o horizonte de expectativa e o espaço da experiência78. Então, o futuro e o passado, respectivamente. Da relação entre essas duas categorias trans-históricas pode ser extraído um conceito de crise. Nota Ricœur que quando o espaço da experiência se estreita por uma recusa geral da tradição o horizonte de expectativa estende-se a um futuro vago povoado de utopias, “sem influência sobre o curso da história”. A tensão entre o passado e o futuro se torna, portanto, ruptura. Lembre-se que justamente aqui Ricœur se encontra com Koselleck quando este último menciona que a pouca visão da crítica e a ausência de compromisso com o futuro gerou a crise da crença na utopia do progresso. Para Ricœur esse estado de coisas caracteriza uma junção, a do estado “longo” de crise, ou seja, seu núcleo concentrado na temporalidade humana com traços dos conceitos regionais de crise que ele79 mencionou de modo invertido: “crise do liberalismo econômico; crise dos fundamentos do saber, crise de legitimidade do poder, crise de identidade da comunidade, crise do equilíbrio e crise da integração do corpo social”. Finalmente, para tentar responder a pergunta sobre “o que podemos entender por modernidade?” Ricœur coloca a si mesmo um desafio. Respondê-la não apenas como um fato global mas, sobretudo, como um fato presente. Ao afirmar que uma sociedade não é transparente para si própria, ele vincula essa ideia com a da ideologia que, segundo entende, “opera nas costas” dos indivíduos e das sociedades. Por tais razões, se uma sociedade não conhece a si própria, uma saída é ler o presente com 78 RICŒUR, 1988b, op. cit., p. 13. Disponível em: https://www.uc.pt/fluc/uidief/ textos_ricœur/crise_fenomeno_moderno. Acesso em: 2 jul. 2023. A definição foi feita por Koselleck: “...experiência e expectativa são duas categorias adequadas para nos ocuparmos com o tempo histórico, pois elas entrelaçam passado e futuro. São adequadas também para se tentar descobrir o tempo histórico, pois, enriquecidas em seu conteúdo, elas dirigem as ações concretas no movimento social e político.” KOSELLECK, Reinhart. Passado e futuro: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução: Wilma Maas. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. p. 308. 79 RICŒUR, 1988b, op. cit., p. 14.
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