87 RAÍZES E RAMIFICAÇÕES: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA AMÉRICA LATINA EM TEMPOS DE COVID-19 proteção, criando, inspirada em Foucault161, verdadeiras “armas de guerras subjetivas”, que contribuem com a morte de corpos diferentes de nós. Essa historicidade brasileira, que mostra um fio condutor entre as velhas e novas crises, trazendo justificativa à pesquisa sobre a justiça de transição neste último contexto, não é apartada da realidade vivenciada em outros países da América Latina, que também tiveram processos históricos de ruptura das frágeis democracias, solapadas por ditaduras apoiadas pelos efeitos colaterais da Guerra Fria e que passaram por recente redemocratização. Nesse sentido, os historiadores Maia e Nunes162 sinalam o fato de os golpes e as ditaduras do Cone Sul serem objeto, por exemplo, de relevante historiografia latino-americana, que vem indicando os muitos fatores que levaram à interrupção da expe161 Em obra na qual seu curso ministrado no Collège de France entre os anos de 1975-1976 é transcrito e traduzido para o idioma português, Foucault, particularmente, em relação às aulas do final de janeiro de 1976, vai explicar a relação entre a narrativa da história e a guerra. A guerra que solapa a sociedade e que conduz o discurso para a binarização de uma luta de raças que, na verdade, não induz ao enfrentamento externo entre elas, mas parte da ideia de uma única raça legítima e uma outra sub-raça. É essa subjetividade que, no interior do corpo social, vai se apropriar do discurso revolucionário e criar a figura do inimigo do Estado, que assumirá a posição de guardião de um conservadorismo social, emergindo o racismo de Estado, o qual levou, por exemplo, ao nazismo na Alemanha. Para Foucault, a luta de raças funcionou como uma “contra-história” ou um “teatro”, fazendo surgir uma racionalidade social binária na qual “de um lado uns, do outro os outros, os injustos e os justos, os senhores e aqueles que Ihes são submissos, os ricos e os pobres, os poderosos e aqueles que só têm seus braços, os invasores das terras e aqueles que tremem diante deles, os déspotas e o povo ameaçador, os homens da lei presente e aqueles da pátria futura”. É, assim, segundo o influente filósofo-político, que a soberania do Estado vai se transformar no imperativo da proteção da raça como uma alternativa e uma barragem para o apelo verdadeiramente revolucionário, servindo o discurso histórico enquanto arma subjetiva de uma guerra ininterrupta cujos vencedores e os vencidos já são preconcebidos. FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução: Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 48-98. 162 MAIA, Tatyana de Amaral; NUNES, Paulo Giovani Antonio. As ditaduras no Cone Sul: um passado presente, um debate urgente! Saeculum, João Pessoa/PB, n. 39, p. 13-18, jul./dez. 2018. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/ srh/article/view/43629. Acesso em: maio 2024.
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