OS EXPURGOS DA DITADURA NA UFRGS MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA CASA LEIRIA
CASA LEIRIA SÃO LEOPOLDO/RS 2025 OS EXPURGOS DA DITADURA NA UFRGS MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA
Os expurgos da ditadura na UFRGS. Memória, Verdade e Justiça. Coletivo Memória e Luta Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Fotografia da capa: Luis Ventura. DOI: https://doi.org/10.29327/5517471 Catalogação na Publicação Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB: 10/973 Ficha catalográfica U58e UFRGS. Coletivo Memória e Luta. Os expurgos da ditadura na UFRGS: memória, verdade e justiça [recurso eletrônico] / por Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Coletivo Memória e Luta. — São Leopoldo: Casa Leiria, 2025. Disponível em: <https://www.casaleiriaacervo.com.br/ história/expurgos/index.html> ISBN 978-85-9509-155-9 1. Rio Grande do Sul – História. 2. Ditadura civil militar – Repressão política – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 3. Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professores universitários – Memória. I. Título. II. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. III. Coletivo Memória e Luta (UFRGS). CDU 94(816.5) 378(816.5)
O Programa de extensão História e Memórias da Universidade, que envolve o projeto Memória: 50 anos dos expurgos da UFRGS, visa à defesa do patrimônio político e histórico da comunidade universitária e é desenvolvido pelo Coletivo Memória e Luta, composto por professores de várias unidades e áreas do conhecimento da UFRGS. Desse coletivo participam: Basílio Xavier Santiago, Beatriz Cerisara Gil, Cleci Regina Bevilacqua, Cristina Amélia Carvalho, Francisco Egger Moellwald, João Henrique Kanan, Jorge Alberto Quillfeldt, José Carlos Freitas Lemos, Laura Verrastro Viñas, Maria Ceci Misoczky, Patrícia Chittoni Ramos Reuillard, Paulo Brack, Pedro de Almeida Costa, Regina Celia Lima Xavier, Robert Ponge e Rualdo Menegat.
6 AGRADECIMENTOS Este livro só foi possível porque muitos ofereceram seu contributo e apoio no intuito de impedir que fosse esquecida a violência exercida sobre a comunidade universitária nos tempos sombrios da ditadura empresarial-militar vivida no país e, ao mesmo tempo, para enaltecer a coragem daqueles que resistiram e sofreram suas consequências. Entre eles, nomeamos: O professor Enrique Padrós (in memoriam), pela orientação imprescindível no início do projeto, para não cometermos erros ou injustiças, e pelo artigo neste livro; A professora Lorena Holzmann, por suas falas apaixonadas na inauguração e na roda de conversa, pelo belo artigo no Sul21 e pelo artigo neste livro; A jornalista Noeli Lisboa, pela generosidade na cedência de valiosos documentos que permitiram mostrar o que foram os expurgos;
7 O historiador Jaime Mansan, por suas brilhantes pesquisas acadêmicas, que deram suporte ao projeto; O administrador Leonardo Zigon Hoffmann, pela generosa cedência de parte do arquivo fotográfico de seu pai, o fotojornalista Assis Hoffmann, que se encontra neste livro; O artista Irineu Garcia, pela generosidade do seu trabalho, que traduziu para o granito o que o projeto buscava apresentar; Oartista NiltonMaia,por assumir o cinzel quando uma viagemde Irineu se impôs; O Museu da UFRGS, o Centro Cultural da UFRGS e a Biblioteca Central da UFRGS pela parceria em diferentes etapas; O professor Carlos Righi, pela gentileza no tratamento das imagens deste livro; O professor Paulo Abdalla e Rodrigo Prado da Costa pela filmagem das rodas de conversa; O fotógrafo Luis Ventura, que deu mais vida às aquarelas e às imagens deste livro com seus registros fotográficos; O Museu da Comunicação Hipólito José da Costa e o Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, pelo apoio à pesquisa documental e pelo apoio à coleta de documentos sobre os expurgos nas universidades, respectivamente; Os dirigentes estudantis dos anos 1960 José Loguercio, Carlos Schmidt, Raul Pont e Flavio Koutzii e os atuais Juliana Guerra, Ana Paula Santos, Rodrigo Fuscaldo (in memoriam) e Alice Gaier por sua participação na Roda de conversa.
8 Um agradecimento muito especial aos professores expurgados da UFRGS CláudioFranciscoAccurso, LuizCarlos PinheiroMachado (inmemoriam), Maria da GlóriaBordini e MariaLuisa deCarvalhoArmando,que, semmedo nem rancor, estiveram presentes em todos os momentos, dando testemunho do que viveram; Aos professores Carlos Jorge Appel e João Carlos BrumTorres, que não puderam comparecer, mas que deram sua contribuição; Aos familiares dos professores Emílio Mabilde Ripoll, Luiz Fernando Corona, Ernani Maria Fiori, Ernildo Jacob Stein, Leônidas Xausa e Nelson Souza, que nos ajudaram, com suas lembranças, a honrar a memória de seus pais.
9 FINANCIAMENTO A produção deste livro digital não teria sido possível sem o apoio do GT História do Movimento Docente (GTHMD) do ANDES – Sindicato Nacional e das seções sindicais do ANDES no Rio Grande do Sul. Agradecemos o suporte financeiro de: ANDES-SN – Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior e da Regional do Rio Grande do Sul ADUFPEL – Associação dos Docentes da Universidade Federal de Pelotas ANDES/UFRGS – Seção Sindical do ANDES-SN na Universidade Federal do Rio Grande do Sul APROFURG – Seção Sindical dos Docentes da Universidade do Rio Grande SEDUFSM–SeçãoSindical dosDocentesdaUniversidadeFederal deSantaMaria
DEDICATÓRIA Este livro é dedicado aos professores, estudantes e técnicos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul que lutaram, resistiram e nos legaram solidariedade e esperança.
11 SUMÁRIO 13 Apresentação 17 Memória e esquecimento Lorena Holzmann 27 Professores da UFRGS expurgados em 1964 e 1969 33 O pássaro da dignidade José Carlos Freitas Lemos 37 A história dos expurgos em aquarelas Aquarelas de José Carlos Freitas Lemos 75 Entre expurgos e dignidade Enrique Serra Padrós (in memoriam) 103 Expurgos nos jornais da época 113 Processos sumários 127 Movimento estudantil em fotos 141 Processo coletivo 151 Inauguração e rodas de conversa 165 Epílogo... e a luta continua
13 APRESENTAÇÃO O livro que você vai começar a percorrer tem por objetivo recuperar parte da memória da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que foi lentamente apagada.
14 No momento em que escrevíamos estas linhas, a UFRGS vivia sob a intervenção de um reitor que não foi escolhido pela comunidade acadêmica, mas imposto por um ex-presidente de extrema-direita. Entretanto, esse tipo de desrespeito à universidade e a perseguição a seus membros começaram muito antes. Dizem os historiadores que um povo sem memória é um povo sem história. Nós, do Coletivo Memória e Luta, formado por docentes de diferentes áreas do conhecimento, atuamos para recuperar a memória dos tempos obscuros da nossa universidade, porque essa é a forma de impedir que essa história se repita. Nossa atuação iniciou em 2019, quando resgatamos a história dos expurgos de professores de nossa universidade, ocorridos em 1964 e 1969. Homenagear os professores e professoras,cruel e injustamente expulsos daUFRGS, tornou-se nossa tarefa primordial. Para lembrá-los, erguemos um Memorial no campus central da universidade. Porém era preciso também contar sua história. Para isso, o Coletivo produziu uma exposição de aquarelas que expõe didaticamente o contexto dos expurgos. Era também fundamental ouvir os professores e professoras expurgados que ainda estavam entre nós, para que dessem seu testemunho em primeira mão daquilo que viveram. Assim, foram organizadas rodas de conversa com docentes expurgados e ex-dirigentes estudantis na UFRGS. Buscando tornar esses registros perenes e de acesso a todos, a partir de entrevistas concedidas à TVE, foram montados dois vídeos, com excertos de depoimentos de quatro desses professores. Além disso, um livro – cujo conteúdo você vai encontrar aqui em parte – foi publicado em 2021, distribuído gratuitamente e enviado
15 a todas as bibliotecas das universidades públicas do país e a entidades dedicadas à defesa dos Direitos Humanos. O Coletivo Memória e Luta fez, dos episódios vividos por esses docentes, o seu ponto de partida para que a memória seja recuperada e a justiça seja feita, e que o estado de exceção nunca mais se repita.
MEMÓRIA E ESQUECIMENTO Lorena Holzmann Mil novecentos e sessenta e quatro foi um ano de profunda ruptura na sociedade brasileira. Então democracia ainda jovem e pouco consolidada, buscava garantir a vigência do Estado de Direito, recorrentemente em risco sempre que possibilidades de mudança na ordem tradicionalmente desigual pudessem ameaçar os privilégios dos donos do poder. Há pouco saído de sua condição de país agrário-exportador e constituindo-se como sociedade urbano-industrial, o Brasil via-se frente a frente com a emergência de novos atores sociais (setores médios e burguesia e classe operária indus-
18 triais), que passavam a formular demandas relacionadas a seus interesses de classe e de cidadãos. A mediação negociada nem sempre fora a solução para os conflitos entre as classes dirigentes e as subalternas, e a intervenção militar era quase uma tradição em nossa história. Naquele ano deu-se mais uma ruptura, com uma nova intervenção militar. Nos anos imediatamente anteriores à intervenção de 1964, o país vivia intensa mobilização em torno da reivindicação de reformas de base, com as quais se esperava avançar na modernização das instituições brasileiras e na superação do atraso da sociedade,marcada por grandes desigualdades regionais e setoriais. A demanda das reformas agrária, urbana, administrativa, tributária, trabalhista, da educação, sobretudo da educação superior, entre outras, desencadeava debates e articulações. Nas universidades, os debates se expandiam para além das questões relativas a esse nível do ensino, abordando a necessidade de transformações estruturais no país. A mobilização popular, sindical e estudantil, e também de segmentos inferiores das forças armadas alertava os altos escalões do edifício de dominação para os riscos de perturbação dos alicerces de sua supremacia. Nesse contexto, cisões eram inevitáveis, acirrando o confronto na sociedade, com repercussão em cada esfera nacional. A intervenção militar de 1964, com decisivo apoio de setores do empresariado, da mídia, do Parlamento, do Judiciário e de alguns segmentos sociais, sobretudo das classes médias, foi a resposta à ameaça anunciada pela mobilização da sociedade brasileira. Ela deu início a 21 anos de autoritarismo, insegurança e subversão jurídicas, prisões arbitrárias, banimentos, torturas, desaparecimentos, mortes, desrespeito aos direitos humanos, cujas raízes se alojaram profundamente na sociedade
19 brasileira e hibernaram por um período, no qual se acreditou que a democracia era, enfim, uma conquista irreversível dos brasileiros. Mas a barbárie daqueles dias, que acreditávamos superada, aflorou com fúria em tempos recentes, destruindo rapidamente importantes garantias sociais, econômicas e políticas obtidas ao longo de décadas de lutas. O que já foi, volta a ser. Por essa razão, faz-se urgente resgatar a memória daqueles anos sombrios, nefastos, a fim de criar forças, construir alianças que impeçam sua repetição e lembrar que também na universidade se instalou a iniquidade de um estado autoritário. Na UFRGS, professores foram submetidos ao julgamento de colegas em comissões de inquérito, nas quais o que menos importava eram provas das acusações feitas aos interpelados, acusações baseadas em denúncias vagas e apócrifas. Simulacros de tribunais isentos foram montados e operaram em consonância com as determinações das autoridades que haviam usurpado o poder legítimo em março de 1964. Desse processo resultou a expulsão de 17 professores, via aposentadoria, exoneração ou suspensão de contratos, configurando o primeiro ciclo de repressão explícita na universidade. O segundo ciclo ocorreria em 1969. Por ação direta das autoridades de Brasília, sem a participação de membros da própria universidade, foram demitidos e exonerados 20 professores, em duas listas, divulgadas no Diário Oficial da União, uma em setembro e a outra em outubro. Esses processos foram registrados em um livro1, publicado em 1979 e uma segunda edição, em 2008, ambas pela editora L&PM, de Porto Alegre. 1 AVERBUCK, Ligia et al. Universidade e Repressão: os expurgos na UFRGS. 2. ed., Porto Alegre/ RS: L&PM, 2008.
20 As ações repressivas contra alunos e servidores administrativos ainda não foram objeto de investigação. São registros a serem feitos. Para marcar os 50 anos do segundo ciclo de repressão na UFRGS (1969-2019), que afastou arbitrariamente professores da universidade, foi inaugurado em novembro de 2019, no Campus Central, um monumento alusivo para que os acontecimentos de então sejam lembrados, para que não se repitam. Este livro se integra ao resgaste desse evento, apresentando depoimentos de professores expurgados e o registro pictórico de episódios e pessoas que marcaram aqueles dias que, por um lado, envergonham nossa Universidade, mas, por outro, destacam a resistência que não deixou de existir naqueles anos em que o país e a universidade viveram à sombra do autoritarismo. Esta iniciativa visa a relembrar esses episódios e manter viva a memória dos acontecimentos. Memória é lembrança e esquecimento. Quando histórica e coletiva, a memória como lembrança pode ser produzida intencionalmente como narrativa construída com o propósito de responder a interesses de diferentes segmentos que fazem parte de uma sociedade. É a história recontada, então, como versões enviesadas de fatos, cuja veracidade poderia desnudar intenções conflitantes, mascarados com o intuito de se fazer acreditar e aceitar sua legitimidade. Ela pode também ser deliberadamente omitida, quando os acontecimentos que aconteceram não são abonadores da autorrepresentação que a sociedade quer fazer de si mesma. Porém, se as ideias dominantes são aquelas das classes dominantes, a narrativa hegemônica dos fatos corresponde à versão dessas classes, que pretendem fazer dessa versão construída a verdadeira fisionomia dos acontecimentos narrados. O outro lado da memória, o esquecimento, pode ser recurso dessa construção, pode
21 fazer parte da narrativa. Negar fatos, assim como omiti-los, é reforçar a versão conveniente àqueles que precisam legitimar sua dominação. É preciso fazer crer que não existiram episódios e acontecimentos que afrontem essa legitimidade, com apelos à desqualificação e ao descrédito de tentativas de contestação das versões difundidas. Assim, afirma-se que o Holocausto não existiu, que no Brasil a ditadura foi branda, que a escravidão foi benéfica para a população escravizada, que as mudanças climáticas são fantasiosas e produto de manipulações ideológicas, e tantas outras versões, rapidamente difundidas com grande abrangência, devido ao poder das tecnologias digitais de informação. No entanto, a memória não é inteiramente usurpada pelo poder vigente e reconfigurada segundo suas conveniências, assim como o esquecimento não anula lembranças das vivências de uma sociedade. As versões dos subalternos e resistentes, as lembranças do que foi por eles vivido podem ser sufocadas pela força das ideias veiculadas pelos senhores de plantão ou, se preciso for, pela força da repressão física ou simbólica, sempre violenta. Mas essas vivências permanecem invisíveis como veios d’água subterrâneos, que, em seu curso inexorável, afloram em determinado momento à superfície, ressurgindo com a força de lembranças ancestrais. A canção que identificava os partisans em luta contra o fascismo ressurge nas praças italianas no século XXI, onde milhares de pessoas entoam Bella Ciao, no movimento dos Sardinhas em oposição às políticas neoliberais de ataque a direitos populares. São as comemorações do 25 de Abril em Portugal, revivendo e celebrando o fim da longa ditadura salazarista. São os Lugares de Memória, no Chile e na Argentina, nos quais se procura manter viva a lembrança das atrocidades que foram os governos ditatoriais nesses países, para que sirvam de alerta à sua não repetição.
22 A identificação com uma causa comum e seu poder agregador faz surgir nova narrativa em oposição à história oficial imposta, arquitetada para tornar legitima a dominação existente. No Brasil, a deturpação da memória parece ser a norma, e o esquecimento, a regra. Heróis nacionais são versões falsas de personalidades sem heroísmo. Episódios cruentos são tratados como epopeias grandiosas das forças da ordem. A resistência, como motim de uns poucos inconformados e perturbadores da ordem social, pois o povo brasileiro é pacífico e ordeiro. Assim era ensinado nos tempos da ditadura. A grande tradição de lutas, ignorada, esquecida. Omitida. Nada sobre os levantes do Brasil desde quando Colônia. Balaiada, Confederação do Equador, Conjuração Mineira, Guerra do Paraguai, Farrapos, Praieira, Ferrabrás, Canudos, Revolta dos Malês, Contestado, nada ou muito pouco. Conflitos de terra marcados pela extrema violência desde as expedições bandeirantes, ensinadas como feitos de homens corajosos e destemidos, que fizeram a grandeza territorial de nosso país. Ou conflitos legitimados como defesa do direito à propriedade de poucos, negado à grande maioria dos deserdados de nossa história. Rupturas na ordem institucional naturalizadas como ocorrências irrelevantes, como a Independência, a República, as tentativas de golpes (1954, 1961 e o Movimento da Legalidade) e os golpes efetivados, como os de 1937 e 1964, com intervenções armadas, o de 2016, jurídico-parlamentar, contra a presidenta Dilma Rousseff, e seus desdobramentos. A narrativa histórica, pela qual se constrói a memória de uma sociedade, não é um processo isento de posicionamento e opções diante dos fatos que a narrativa procura resgatar, ou omitir. Não é uma leitura e interpretação imparciais e isentas
23 dos acontecimentos. Ela tem perspectiva e foco, expressa o lugar da fala. Por isso, ela pode comportar diferentes versões, opostas e até conflitantes. Mas a História, como disciplina científica, assim como as demais Ciências Sociais, quando fazem a reconstrução do passado e do presente, ainda que a façam de um ponto de vista arbitrado a partir do qual abordam os fenômenos estudados, não podem prescindir do rigor do método na coleta dos dados, na sua análise e interpretação, sob pena de fabricar panfletos e não produzir conhecimento como resultado de trabalho científico, metodicamente conduzido. Não é uma leitura neutra, mas não pode prescindir da ética e do compromisso intelectual com a verdade e com a evidência dos fatos. A memória de nossa história é, sobretudo, esquecimento. Quando lembrança, é a versão oficial da história, elaborada a partir das e pelas posições superiores do edifício social, a elite econômica, política, social e cultural. Faz-se urgente opor-se a essa manipulação, resgatando-se os elementos fáticos na reconstrução intelectual dos acontecimentos históricos, expondo os verdadeiros interesses que se articulam sob a aparente casualidade de eventos encadeados ao longo do tempo, difundi-los, preservando a memória coletiva, evitando que ela caia no esquecimento. Esta obra tem este compromisso. As novas gerações de professores, servidores administrativos e alunos que trabalham e estudam nesta Universidade desconhecem a brutalidade dos ataques que sobre ela se abateram nos idos de 1960, com o afastamento de professores de modo arbitrário, pelos escalões superiores da estrutura do poder instalado, como em 1969, ou com a participação de membros da própria Universidade, profes-
24 sores colaborando com a repressão para a expulsão de colegas, como em 1964. Resgatar esses episódios hoje é, mais do que necessário, urgente. É preciso saber sobre a gravidade das consequências do arbítrio sobre pessoas e sobre instituições, quando garantias legais são destruídas, abrindo caminho às desforras individuais, a interesses escusos, a projetos individuais ou coletivos inconfessáveis, toda essa iniquidade em nome da defesa da pátria, da família e da moralidade. Manter viva a memória daqueles eventos, repeti-la sem tréguas, é fundamental para a garantia dos direitos dos cidadãos e a defesa da instituição Universidade e do papel que ela desempenha na produção de conhecimentos necessários para o desenvolvimento soberano do país, para o conhecimento de nossa história e dos obstáculos que nos impedem de sermos menos desiguais, menos violentos, mais democráticos. Defesa da universidade pública, da ampliação de sua acessibilidade aos setores desvalidos de nosso país, sempre dela alijados. Defesa do papel da universidade na produção e difusão da arte, da cultura, dos valores humanistas, democráticos, da tolerância com a diversidade, do debate que faz avançar ideias, da aceitação da dúvida e da recusa a certezas absolutas, impeditivas de realizar sua tarefa histórica. Que as palavras que encerram a apresentação da segunda edição do livro sobre os expurgos na UFRGS nos anos 1960, sintetizem a importância deste livro que agora vem a público: “Que esta obra sirva para reforçar a importância da recusa ao arbítrio e seus efeitos nefastos e limitadores, que disseminam a intolerância, sufocam a liberdade e propagam o medo”.
27 PROFESSORES DA UFRGS EXPURGADOS EM 1964 E 1969 Os processos de expurgo de professores, que ocorreram em 1964 e 1969 em diversas universidades públicas, entre elas a UFRGS, tiveram peculiaridades e diferenças que merecem ser assinaladas. Em 1964, vigorava o Ato Institucional nº1 (AI-1), que deu sustentação juridíco- -institucional à ”Operação limpeza”. No âmbito dessa operação, as reitorias das universidades receberam instruções do Ministro da Educação e Cultura, Flávio Suplicy de Lacerda, para procederem a investigações sumárias de professores.
28 É assim que, em maio de 1964, a URGS2 criou a Comissão Especial de Investigação Sumária (CEIS). No mesmo dia, tomou posse o reitor José Carlos Fonseca Milano, que imediatamente exigiu a indicação de um professor de cada unidade para constituir a comissão. Fizeram parte da primeira composição da CEIS-URGS: Amadeu Fagundes da Rocha Freitas (Faculdade de Arquitetura), DelfimMendes da Silveira (Faculdade de Direito de Pelotas), Gastão Coelho Pureza Duarte (Faculdade de Odontologia de Pelotas)3, Jacy Carneiro Monteiro (Faculdade de Medicina), Lourenço Mario Prunes (Faculdade de Filosofia), Luiz Carlos Guimarães (Faculdade de Odontologia de Porto Alegre), Moysés Westphalen (Faculdade de Agronomia e Veterinária), Ney Messias (Faculdade de Direito de Porto Alegre), Neya Machado da Silva (Escola de Enfermagem), Othon Sá Castanho (Escola de Geologia), Paulo Maurell Moreira (Faculdade de Farmácia), Saviniano de Castro Marques (Escola de Engenharia), Zacarias Valiati (Escola de Artes) e Nagipe Buaes (Faculdade de Ciências Econômicas). Este último assumiu a presidência da referida comissão. A estes se somou o General Jorge Cesar Garrastazu Teixeira, indicado pelo 3º Exército e que era, de fato, o coordenador da Comissão. Em 1964, a Universidade teve certa “autonomia” para proceder aos processos de expurgo, ao organizar a comissão com seus próprios professores, ainda que com “assessoria”militar. Em 1969, porém, a situação mudou: já sob o Ato Institucional n.º 5 (AI-5), que aprofundaria o terror no país, o então Ministro da Educação e Cultura Tarso Dutra, porto-alegrense formado na Faculdade de Direito, determi2 Em 1950, a URGS foi “federalizada” e, em 1965, passou a ser conhecida como UFRGS. 3 Em 1947, as Faculdades de Direito e de Odontologia de Pelotas haviam sido incorporadas à URGS.
29 nou a criação da Comissão de Investigação Sumária do MEC (CISMEC). Com ela, o ministério passava a exercer diretamente o controle e a coordenação dos processos sumários e a aplicação das perseguições aos docentes. O primeiro presidente da CISMEC foi o integralista Jorge Boaventura de Souza e Silva, ligado à Escola Superior de Guerra. Embora fossem diferentes em seu funcionamento e no modo de controle político-ideológico, ambos os processos de expurgos foram arbitrários e conduzidos de modo autoritário, atingindo duramente a intelectualidade acadêmica do país.
30 DOCENTES EXPURGADOS EM 1964 Ajadil de Lemos - Direito Antônio de Pádua Ferreira da Silva - Ciências Econômicas Antônio Santos Flores - Medicina Ápio Cláudio de Lima Antunes - Direito (Pelotas) Armando Temperani Pereira - Ciências Econômicas Brasil Rodrigues Barbosa - Direito Carlos Jorge Appel - Colégio de Aplicação Cibilis da Rocha Viana - Ciências Econômicas Cláudio Francisco Accurso - Ciências Econômicas Demétrio Ribeiro - Arquitetura Edgar Albuquerque Graeff - Arquitetura Edvaldo Pereira Paiva - Arquitetura Enilda Ribeiro - Arquitetura Ernani Maria Fiori - Filosofia Hugolino Andrade Uflacker - Direito Luiz Carlos Pinheiro Machado - Agronomia e Veterinária Luiz Fernando Corona - Arquitetura Nelson Souza - Arquitetura Observação: Em razão da escassez de pesquisas a respeito dos expurgos e de critérios diferentes usados para a contabilização dos expurgados – caso dos professores que deixaram o Rio Grande do Sul antes de serem expurgados ou presos e, por isso, não foram oficialmente expulsos –, ocorrem eventualmente divergências no número de expurgados. Nesta publicação, usamos como referência MANSAN, Jaime Valim. Os expurgos da UFRGS: afastamentos sumários de professores no contexto da ditadura civil-militar (1964 e 1969). 2009. 323 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.
31 DOCENTES EXPURGADOS EM 1969 Angelo Ricci - Filosofia (diretor) Antonio do Carmo Cheuiche - Filosofia Ari Mazzini Canarin - Arquitetura Bruno Puntel - Filosofia Carlos de Britto Velho - Filosofia Carlos Maximiliano Fayet - Arquitetura Carlos Roberto Velho Cirne Lima - Filosofia Dionísio de Oliveira Toledo - Letras Emilio Mabilde Ripoll - Arquitetura Ernesto Antonio Paganelli - Arquitetura Ernildo Jacob Stein - Filosofia Gabriel Azambuja de Britto Velho - Filosofia Gerd Alberto Bornheim - Filosofia João Carlos Brum Torres - Filosofia Joaquim José Barcelos Felizardo - CAFDR4 José Pio de Lima Antunes - Agronomia e Direito (Pelotas) Leônidas Xausa - Filosofia Manoel Alves de Oliveira - Agronomia (Pelotas) Maria da Glória Bordini - Letras Maria Luisa de Carvalho Armando - Letras Reasylvia Kroeff de Souza - Letras Roberto Buys - Arquitetura Victor de Britto Velho - Filosofia 4 Centro Acadêmico Franklin Delano Roosevelt da Faculdade de Filosofia.
33 O PÁSSARO DA DIGNIDADE José Carlos Freitas Lemos Nossas histórias são feitas de espectralidades que nos rodeiam a todo momento. Constituem um jogo paradoxal em que assombrações, espectadores e exorcistas se confundem. Acontecimentos e práticas consideradas mortas, obsessivamente retornam.
34 A exposição das 18 aquarelas emgrande formato noCentro de Cultura da UFRGS, parte do projeto de extensão “MEMÓRIA – 50 ANOS DOS EXPURGOS DA UFRGS”, de um coletivo de professores de diversas áreas da universidade fez emergir um campo privilegiado de fantasmagorias. Sem dúvida, uma das atividades mais intensas que experimentei em toda minha vida. Por quarenta dias e noites me submeti a uma espécie de transe vertiginoso. Circulei com pessoas nunca vistas, batalhas perdidas, gritos esquecidos e gestos estranhos, carregados de muita expressão. Vi a realidade como desenho, fui perturbado pela arte, obtive o olhar de um louco. Nos lugares, olhei as pessoas e medi suas sombras, fitei o detalhe dos seus brilhos nas pontas de seus narizes, a posição dos olhos, a geometria das cenas que se descortinavam. Viajei no tempo, estive com políticos, vivi seus medos, me embrenhei em multidões do passado e compartilhei suas tragédias. Foi em meio a essa sanha incessante, em meu apartamento no Bom Fim, numa tarde quente de outubro, que sobreveio o inexplicável comum aos presságios e às conjurações. Na tela aberta do notebook que eu usava para capturar e copiar as imagens, pousou um filhote de passarinho.... Tal acontecimento fraturou minha vontade, piorou a desordem afetiva, remexeu minhas perturbações éticas e morais e acrescentou uma dimensão surreal ao que eu fazia. Somente quando foi finalizada a exposição, plenamente acolhida pela excelente direção e organização do Centro Cultural da UFRGS, foi que percebi no silêncio de um respeito profundo e insondável o que aquele pássaro tanto havia conjurado quanto pressagiado. Isto aconteceu durante as palavras finais e emocionadas da querida professora homenageada Maria Luiza Armando: “Vocês me reconciliaram com a UFRGS”.
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37 A HISTÓRIA DOS EXPURGOS EM AQUARELAS Aquarelas de José Carlos Freitas Lemos
38 A Campanha da Legalidade teve como personagem principal o então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. Com a renúncia do presidente Jânio Quadros, em 1961, setores conservadores da sociedade tentaram impedir a posse do vice João Goulart, que se encontrava em viagem de Estado à República Popular da China. Mobilizada pelo governador, a população do Rio Grande do Sul foi às ruas exigir a manutenção da legalidade constitucional. Esses setores conservadores reagiam às Reformas de Base, como eram chamadas as mudanças propostas nas estruturas econômicas, sociais e políticas do país para enfrentar a miséria de grande parte da população, diminuir as desigualdades sociais e combater o subdesenvolvimento. Entre elas, estava a Reforma Universitária, que também buscava uma sociedade mais justa e inclusiva.A UniãoNacional dosEstudantes (UNE),através do Movimento do 1/3, defendia a paridade na escolha dos dirigentes das universidades. Para saber mais: Consulte o site da UNE: https://www.une.org.br/ Assista ao filme Legalidade, do diretor Zeca Brito, que estreou em setembro de 2019, disponível em streaming. PADRÓS, Enrique Serra et al. A Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): História e Memória. Porto Alegre: Corag, 2014. 4 v. Observação: as aquarelas a seguir foram registradas pelo fotógrafo Luis Ventura.
40 Em 1959, a Revolução Cubana pôs fim ao domínio dos Estados Unidos sobre seu território. Em 1962, o presidente João Goulart se recusou a votar contra Cuba na Organização dos Estados Americanos (OEA), no episódio da crise dos mísseis, e também se opôs à instalação de armas nucleares na América Latina. Além disso, o governo brasileiro resistia à imposição norte-americana de definir os investimentos do programa econômico Aliança para o Progresso. Tantas demonstrações de autonomia não agradaram ao “grande irmão”. Foi nesse contexto que setores da classe dominante se organizaram no anticomunista Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), ou na Sociedade Rural Brasileira, e protagonizaram as Marchas da Família comDeus pela Liberdade. Construíam assim o ambiente propício para o Golpe de Estado de 1964. Hoje os historiadores sabem que o governo de John Kennedy planejou a “Operação Brother Sam”, que previa o envio de uma força naval para a costa brasileira, com combustível, munições e armas para apoiar os golpistas. Para saber mais: FICO, Carlos. O grande irmão. Da operação Brother Sam aos anos de chumbo. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. FERREIRA, Jorge; GOMES, Angela de Castro. 1964: o golpe que derrubou um presidente e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
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42 A crise política gerada pela resistência dos setores conservadores do país à posse de João Goulart, como determinava a lei, foi se agravando, pois o governo de Goulart optara por um desenvolvimento econômico nacional autônomo e independente, por uma Reforma Agrária que promovesse um mínimo de justiça no campo e por um sindicalismo de defesa dos trabalhadores. Em 31 de março de 1964, tem início a destruição do Estado Democrático de Direito por meio da intervenção dos militares na política nacional, a serviço dos interesses dos setores conservadores da sociedade brasileira e dos EUA. O General Castelo Branco assume a presidência do país. A força substitui a política no debate das ideias. Milhares de pessoas foram presas nos primeiros dias do Golpe de Estado. Muitas tentaram, corajosamente, resistir; outras fugiram para escapar à prisão. Instalava-se o Estado de exceção e tinha início a longa noite que se abateria sobre nosso país por 21 anos. A “doutrina da segurança nacional”, impulsionada pela Escola Superior de Guerra, impôs a censura e a repressão a tudo que se opusesse à ideologia de Estado vigente. Para saber mais: DREIFUSS, René Armand. 1964: A conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2006. Assista ao filme Cabra marcado para morrer, documentário do diretor Eduardo Coutinho, de 1984. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VxzgLPyLIf4. Acesso em: 7 nov. 2019.
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44 Todos os possíveis opositores ao Estado de exceção foram perseguidos e silenciados. Entrava em ação a Operação limpeza, que impunha um só pensamento e uma só voz. Assim, em 9 de abril de 1964, foi promulgado o Ato Institucional nº 1 (AI-1), que legalizava a “limpeza” dos adversários: foram cassados os direitos políticos de cem civis e militares brasileiros, entre os quais 3 ex-presidentes da República, 6 governadores, 2 senadores, 63 deputados federais, 300 deputados estaduais e vereadores; também foram mandados para a reserva dezenas de oficiais das Forças Armadas e demitidos milhares de funcionários públicos. Muitos professores estavam entre eles. Entre esses valorosos homens e mulheres, estavam João Goulart, Leonel Brizola, Luiz Carlos Prestes, Miguel Arraes e Darcy Ribeiro. Para saber mais: ARNS, Dom Paulo Evaristo (org.). Brasil Nunca Mais. Rio de Janeiro: Vozes, 1985. SCLIAR, Moacyr; VENTURA, Zuemir; VERISSIMO, Luis Fernando. Vozes do Golpe. São Paulo: Cia das Letras, 2004. SCHMIDT, Benito B. Flavio Koutzii: biografia de um militante revolucionário (de 1943 a 1984). Porto Alegre: Libretos, 2017.
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46 A Operação limpeza que atingiu a sociedade brasileira foi aplicada com rigor nos espaços de criação de pensamento crítico e autônomo e de produção de conhecimento econômico, político e cultural: a universidade brasileira, um dos alvos preferenciais do Estado de exceção. Na UFRGS, 18 professores foram sumariamente afastados, em setembro de 1964, a partir das “investigações” realizadas pela Comissão Especial de Investigação Sumária (CEIS). Entre eles, os professores Ernani Fiori, da Filosofia, e Demétrio Ribeiro, da Arquitetura. Mas o processo não pararia ali, pois o professor Emilio Ripoll seria expurgado cinco anos depois. ACEIS fora criada peloMinistro da Educação e Cultura,Flávio Suplicy de Lacerda, e instituída pelo reitor José Carlos Fonseca Milano, que exigira a cada unidade da UFRGS a indicação de um nome para compô-la. A Faculdade de Arquitetura foi a única a resistir a esse constrangimento e a se negar a fazer essa indicação. Entretanto, quem efetivamente coordenava a CEIS/UFRGS era o Gen. Jorge Cesar Garrastazu Teixeira, oficial indicado pelo 3º Exército. Os “julgamentos” aconteciam na sala onde ainda hoje ocorrem as reuniões do Conselho Universitário (CONSUN). Para saber mais: MANSAN, Jaime Valim. Os expurgos na UFRGS. Afastamentos sumários de professores durante a ditadura militar. Curitiba: Apris, 2023. GIANNAZI, Carlos. Marcha contra o saber. O golpe militar de 1964 e o AI 5 na Universidade de São Paulo. São Paulo: Global, 2014.
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48 Setores da sociedade, como os professores, os servidores técnicos e os estudantes das universidades, tentavam resistir à repressão. Em Porto Alegre, logo após o Golpe de Estado, os estudantes ocuparam a Reitoria e a Rádio da UFRGS como forma de manifestar seu repúdio ao Estado de exceção. Em novembro de 1964, os estudantes da Faculdade de Economia convidaram o Professor Cláudio Accurso, que acabara de ser afastado da universidade, para ser paraninfo de sua formatura, que ocorreria no mês seguinte. O Diretor da Faculdade propôs, ao contrário, uma cerimônia simples, a portas fechadas, para não chamar a atenção. Porém, os estudantes não aceitaram essa proposta e optaram por homenagear seu professor, abertamente, no saguão do prédio da Faculdade de Ciências Econômicas. Para saber mais: GUEDES, Paulo Coimbra; SANGUINETTI, Yvonne (org.). UFRGS Identidades e memórias. Porto Alegre: UFRGS, 1994. RODEGHERO, Carla S.; GUAZZELLI, D.; DIENSTMANN, Daniel. Não calo, grito: memória visual da Ditadura Civil-Militar no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Tomo, 2013.
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50 Passado o impacto inicial provocado pelo Golpe e a repressão que se seguiu, a sociedade civil e os movimentos de esquerda, sobretudo na universidade, reorganizaram-se para defender a democracia. Em Porto Alegre, os alunos de cada unidade organizavam a tradicional Passeata dos Bixos. Era um desfile dos calouros, que se fantasiavam e carregavam alegorias com sátiras sociais que divertiam, mas, sobretudo, faziam críticas ao sistema. Eles percorriam as avenidas Salgado Filho e Borges de Medeiros e a Rua da Praia, e milhares de pessoas assistiam aos desfiles. Certa vez, os estudantes de Veterinária desfilaram com um enorme dinossauro, acompanhado da inscrição “último estágio da evolução brasileira”. Em 1966, em pleno período ditatorial, os calouros da Filosofia fizeram um desfile inspirado na peça “Liberdade, liberdade”, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, posteriormente censurada. Vestidos de preto, os estudantes levaram grandes caixas de onde saíram pombas brancas. Como conta Jaime Mansan, “A Filosofia venceu aquela última Passeata dos Bixos, recebendo sete notas 10, uma nota 4 e um isolado zero, dado pelo Secretário de Segurança Pública do RS, Cel. Washington Bermudez”. A partir daquele dia, a Passeata dos Bixos foi proibida. Para saber mais: MANSAN, Jaime. Movimentos estudantis no sul do Brasil durante a ditadura militar: uma reflexão a partir do caso da UFRGS (1964-1974). In: PEREIRA, Elenita Malta; DEBIASI, Rose Elke (org.). Movimentos sociais e resistência no sul do Brasil. Curitiba: Appris, 2020. PONT, R. J. A. Liberdade, liberdade. In: ACCURSO, C. F. et al. (org.). O ensino de Economia na UFRGS. Porto Alegre: UFRGS, 2000.
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52 Em várias ocasiões, os estudantes da UFRGS lideraram a luta contra a opressão e a violência do Estado e defenderam a universidade pública. Em Porto Alegre, a Faculdade de Filosofia era o centro dessa resistência democrática. Em 1964, logo após o Golpe, uma intervenção militar extinguiu a Federação dos Estudantes da URGS e a substituiu pelo DCE. Determinou também um aumento de 769,23% no valor das refeições no Restaurante Universitário (RU). Em 1966, o reitor José Carlos Fonseca Milano ordenou a retirada à força das lideranças estudantis da sede do DCE. Poucos meses depois, ordenou novo reajuste de 500% no valor da refeição estudantil. Em março de 1967, duzentos estudantes ocuparam o RU e a Casa do Estudante da UFRGS para chamar a atenção para suas reivindicações, mas foram desalojados à força no dia seguinte pelo chefe de Polícia Cel. Pedro Américo Leal, à frente de duzentos homens armados. Dias depois, o CONSUN instituiu uma “Comissão de Inquérito Administrativo” e abriu processo contra as lideranças estudantis. Em maio de 1967, o líder estudantil João Carlos Alberto Pinto Vieira foi expulso da UFRGS. Para saber mais: MOTTA,Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regimemilitar.Rio de Janeiro: Zahar, 2014. KANTORSKI, Leonardo. UFRGS e UNLP: Políticas de perseguição e exclusão nas Instituições de Educação Superior do Cone Sul. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.
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54 Em 26 de junho de 1968, mais uma manifestação liderada por jovens, estudantes e artistas, reuniu milhares de pessoas na Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro. Foi a maior manifestação de protesto desde 1964, conhecida como Passeata dos CemMil. Foi uma resposta à repressão crescente e teve como estopim o assassinato do secundarista Edson Luís de Lima Souto, de 18 anos, por policiais militares, no restaurante universitário Calabouço, no centro do Rio de Janeiro, onde estavam cerca de trezentos estudantes. Para saber mais: Consulte o site Memórias da Ditadura: https://memoriasdaditadura.org.br/ TOLEDO, Caio Navarro de (org.). 1964:Visões críticas do golpe: Democracia e reformas no populismo. 2. ed. Campinas, SP: Unicamp, 2014.
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56 A resistência da parcela mais dinâmica da sociedade brasileira – não por acaso os jovens estudantes universitários – à repressão, à falta de liberdade, à subserviência aos interesses de potências estrangeiras e ao aprofundamento das desigualdades também acontecia no restante do mundo naquele momento. Era o ano de 1968: o governo estadunidense enfrentava os protestos contra a Guerra do Vietnã, a luta contra o racismo do Movimento dos Panteras Negras e do Movimento pelos Direitos Civis, liderado por Martin Luther King. No Velho Continente, a revolta estudantil, conhecida como Maio de 68, obrigava a sociedade a reconhecer que o fim da Segunda Guerra Mundial não era o fim da história. A Primavera de Praga reivindicava reformas na Tchecoslováquia. No México, por sua vez, o massacre de Tlatelolco resultou na morte de mais de trezentos estudantes, por protestarem contra a intervenção armada na Universidade Nacional do México (UNAM) e contra a prisão de seus colegas, pouco antes dos Jogos Olímpicos do México. Para saber mais: DAVIS, Angela. Uma autobiografia. São Paulo: Boitempo, 2019. PONGE, Robert. 1968: o ano das muitas primaveras. Porto Alegre: Unidade, 1998. Assista ao filme Rojo Amanecer, do diretor Jorge Fons, de 1989. Disponível em: https://www. imdb.com/pt/title/tt0098214/. Acesso em 10 mar. 2025.
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58 No Brasil, em 1968, os movimentos de rebeldia e resistência ao arbítrio, à censura, à violência do Estado e à crescente desigualdade social lentamente se intensificaram. Os setores progressistas da universidade lutavam contra sua elitização, e os estudantes reuniam-se em torno da UNE. Fundada em 1937, a UNE fora proibida após o Golpe de 64 e, por isso, os estudantes decidiram realizar seu 30º Congresso clandestinamente. Em 12 de outubro de 1968, cerca de mil estudantes se reuniram em Ibiúna, pequena cidade no interior de São Paulo, para discutir os destinos do movimento estudantil e eleger sua nova direção. Foram todos presos e levados para o Presídio Tiradentes ou para Carandiru. Entre eles, estavam Vladimir Palmeira, alagoano e líder estudantil no Rio de Janeiro, José Loguercio e Raul Pont do Rio Grande do Sul. Para saber mais: ARAÚJO, Maria Paula do Nascimento. Memórias estudantis: da fundação da UNE aos nossos dias. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2007. Assista ao vídeo sobre o Congresso de Ibiúna. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=5GRS-fBcnJ8&t=463s. Acesso em: 7 nov. 2019.
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60 O Ato Institucional n.o 5 (AI-5), decretado pelo presidente Costa e Silva em dezembro de 1968, foi a mais brutal intervenção jurídica da ditadura instaurada em 1964 no Estado de Direito e na normalidade constitucional. As prisões dos divergentes recrudesceram, a prática da tortura se tornou recorrente, as intervenções em Estados e municípios aconteciam sem nenhuma proteção jurídica, os parlamentares tiveram seus mandatos cassados e as garantias constitucionais desapareceram. Na UFRGS, o reitor Eduardo Zácaro Faraco, nomeado por Costa e Silva, instituiu a Comissão de Investigação Sumária do Ministério da Educação e Cultura (CISMEC) e promoveu uma nova onda de expurgos de professores. Desta vez, pelo menos 23 docentes foram atingidos. Dentre eles, Carlos Maximiliano Fayet, Carlos Brum Torres, Carlos Roberto Cirne Lima e a professora Maria Luiza de Carvalho Armando, que reivindicou sua própria expulsão em solidariedade aos colegas. Para saber mais: Consulte o site Memórias reveladas: https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br. AVERBUCK, Ligia et al. Universidade e Repressão: Os expurgos na UFRGS. 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 2008. GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. 2. ed., São Paulo: Ática, 1987.
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62 O jornalista, professor e cineasta brasileiro Vladimir Herzog morreu em 25 de outubro de 1975 numa cela do DOI-Codi, em São Paulo. Os militares alegaram suicídio, mas, pouco tempo depois, Rodolfo Konder, jornalista preso na mesma ocasião e local, denunciou corajosamente que Herzog fora assassinado sob tortura, fato reconhecido pelo Estado vários anos depois. Para Vlado, que era judeu, foi realizado um culto ecumênico, na Catedral da Sé, sob a liderança do cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, do Pastor Jaime Wright e do rabino Henry Sobel, que, recusando a justificativa de suicídio, ordenou o enterro do corpo no centro do Cemitério Israelita. Milhares de pessoas foram prestar-lhe homenagem na Praça da Sé sitiada, no primeiro protesto popular após o AI-5. O assassinato de Herzog e a revolta que se seguiu marcaram o início do fim do regime ditatorial. Para saber mais: Assista ao filme Ainda estou aqui, de Walter Salles, que deu o 1º prêmio Oscar para o Brasil como Melhor Filme Estrangeiro. Consulte o site do Instituto Vladimir Herzog: https://vladimirherzog.org/ GODOY, Marcelo. A casa da vovó. São Paulo: Alameda, 2014.
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64 Promover a “abertura”, mesmo que lenta e gradual, não foi uma decisão consensual nos porões da ditadura. Até 1981, a extrema-direita, inconformada com os ventos democráticos que já sopravam, promoveu vários atentados – na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), no Rio de Janeiro, entre outros –, seguidos de bombas em livrarias, universidades e bancas de revistas que vendiam jornais progressistas. Na noite de 30 de abril de 1981, no estacionamento do Centro de Convenções do Riocentro, onde milhares de pessoas assistiam a um espetáculo comemorativo ao Dia do Trabalhador, uma bomba explodiu dentro de um carro, no colo de um sargento e de um capitão. Acabava assim, tragicamente, a farsa dos atentados para impedir a redemocratização do país. Com a Anistia, os exilados retornaram ao país, os presos recuperaram sua liberdade, e a sociedade se fez representar por partidos políticos. Professores expurgados também estavam entre eles. Mecanismos foram criados para reparação civil dos atingidos pela violência do Estado, mas a maioria dos corpos dos desaparecidos não foi localizada e devolvida às suas famílias, nem os acusados de tortura foram incriminados. Para saber mais: SANTOS,CeciliaMacDowell;TELES,Edson Luís de Almeida;TELES, Janaína de Almeida. Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2009. 2 v. Consulte o site do Memorial da Democracia: https://www.memorialdademocracia.com.br/
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66 Em 17 de junho de 1978, num dia chuvoso, professores da UFRGS reunidos na sala do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional (PROPUR), na Faculdade de Arquitetura, fundaram a Associação dos Docentes da UFRGS (ADUFRGS). Cinco dias antes da promulgação da Lei de Anistia, em agosto de 1979, o livro Universidade e repressão: os expurgos da UFRGS foi lançado na Assembleia Legislativa do RS. Para proteger seus autores, a ADUFRGS se apresentou como autora. Somente 30 anos depois, no lançamento da segunda edição, os professores que corajosamente haviam escrito a história dos expurgos, denunciando as injustiças que a ditadura causara na UFRGS, puderam assumir sua autoria: Lígia Averbuck, Maria Assunta Campilongo, Lorena Holzmann, Luiz Alberto Oliveira Ribeiro de Miranda, José Vicente Tavares dos Santos e Aron Taitelbaum. Para saber mais: SCHMIDT, Benito Bisso. Adufrgs 25 anos: história e memórias. Porto Alegre: ADUFRGS, 2004.
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68 A partir de maio de 1978, o Brasil viu emergir um novo movimento sindical. Em março de 1979, cerca de duzentos mil operários aderiram a uma greve no ABC paulista por melhorias salariais. Lutavam por seus empregos e por salários dignos que os protegessem de uma economia hiperinflacionária. A Central Única dosTrabalhadores (CUT) surgiu, em agosto de 1983, a partir das grandes mobilizações dos trabalhadores, que se uniram para lutar contra a carestia, por melhores salários e condições de trabalho e pelo direito de se organizarem em seus locais de trabalho. Também nas universidades a luta continuava. Em julho de 1986, a Associação Nacional dosDocentes doEnsino Superior (ANDES) denunciou publicamente a tentativa do governo de recriar as Assessorias de Segurança e Informações (ASI) nas universidades. A pressão política teve êxito, pois o então ministro da Educação, Jorge Konder Bornhausen, foi obrigado a decretar a extinção de todos esses aparatos herdados da ditadura. As ASI foram extintas no final daquele ano, juntamente com a Assessoria Especial de Segurança e Informações. Para saber mais: ANTUNES, Ricardo. O novo sindicalismo no Brasil. 2. ed. Campinas: Pontes, 1995.
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70 Assim como toda organização de trabalhadores no país, o movimento sindical docente foi influenciado pelo processo de redemocratização que se vivia. Os professores se filiaram em massa aos sindicatos e associações, que se afirmavam como entidades representativas e legítimas de defesa da categoria. Simultaneamente ao processo de redemocratização da sociedade, adotava-se uma economia neoliberal que mercantilizava todos os serviços e provocava arrocho salarial, promovida por Fernando Henrique Cardoso e, na educação, por Paulo Renato Souza. O exercício da democracia ampliou a politização do conjunto do corpo docente, que aprendeu a usar os recursos da legislação trabalhista para defender suas condições de trabalho e a própria universidade pública. Foram tempos de greves dos docentes em luta por seus direitos e pela universidade. Essas duas frentes se constituíram – e se constituem – como vertentes da mesma luta. Para saber mais: LEMOS, Renato Luís do Couto Neto e. Ditadura, anistia e transição política no Brasil (1964-1979). Rio de Janeiro: Consequência, 2018.
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72 Em 1988, a nova Constituição Federal valorizou os direitos sociais e trabalhistas e elevou a cidadania a um novo patamar. A partir de 2007, ampliou-se o número de vagas nas universidades e um maior número de jovens, inclusive de fora dos grandes centros urbanos, teve acesso à universidade pública, gratuita, laica e de qualidade. Em 2012, as lutas no âmbito da sociedade levaram à adoção de um Sistema de Cotas sociais e étnicas para acesso às universidades públicas, como ocorreu na UFRGS. Trata-se de uma política de ações afirmativas que objetiva minimizar as desigualdades étnico-raciais do nosso país, uma das maiores do mundo. Hoje, as universidades públicas estão mais plurais e coloridas, mas ainda há muito a fazer para que o ensino superior esteja a serviço do povo brasileiro. A história não acaba aqui. A pluralidade social e étnica desagradou a muitos que tinham o monopólio do mercado de trabalho. Hoje, cabe a todos nós defendermos as conquistas anteriores, aprofundá-las e não permitir, nunca mais, a repetição de uma violência como os expurgos. Para saber mais: QUEIROZ, Jairo; SILVA, Maria Nilza da (org.). O negro na universidade: o direito à inclusão. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2007. SANTOS, Jocélio Teles dos (org.). O impacto das cotas nas universidades brasileiras (20042012). Salvador: CEAO, 2013.
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