122 Karl Polanyi e a terra como mercadoria no Brasil (séculos XVI – XIX) o autor entende que os mercados e as mercadorias, ainda que historicamente longevas e socialmente relevantes, funcionaram sempre de acordo com normas desenvolvidas em outras instâncias sociais.2 Na obra A Grande Transformação (1944), Polanyi descreve o processo de desenraizamento (disembeddedness) da economia frente a essas outras instâncias pela formação do mercado (supostamente) autorregulado. Este, por sua vez, não seria apenas uma instituição apartada da sociedade como um todo, funcionando com regras próprias; tratar-se-ia na verdade de uma inversão, onde a sociedade passaria a orientar-se para a satisfação dessa instituição teoricamente autônoma. Nessa lógica, o mercado autorregulado seria a instância organizadora das relações sociais – onde os seres humanos, nas relações de troca, encontrariam sua subsistência. Contudo, para que isso funcionasse, o mercado deveria dispor de todos os recursos necessários para a organização da economia, não apenas mercadorias convencionais, produzidas para a troca, mas também, e principalmente, aquelas que Polanyi define como “mercadorias fictícias”: terra, trabalho e dinheiro – ou seja, natureza, seres humanos e meios de circulação.3 No processo de desenraizamento desses elementos da esfera social em direção ao mercado, Polanyi vê consequências nefastas: nada menos que o esgarçamento do tecido social. Para o autor, a partir do momento em que as “mercadorias fictícias” entram no circuito da economia de mercado, cria-se uma dependência dos seres humanos com relação a esta. Sujeitas à lei da oferta e procura, as pessoas veem-se cada vez mais submetidas à desapropriação, desemprego e miséria – respectivamente, a perda da terra, do trabalho e dos meios de circulação. Segundo Polanyi, no entanto, esse processo não ocorre sem resistências. A sociedade se mobiliza para contrapor o movimento do mercado autorregulado, buscando colocar limites a ele e criar formas de proteção social. Assim, a obra A Grande Transformação descreve tanto o processo de formação do mercado autorregulado quanto as formas de oposição a ele, em defesa da sociedade. II – Polanyi e a terra no Brasil A opção de Polanyi por centrar-se na experiência histórica britânica das idades Moderna e Contemporânea, com poucas incursões sobre o universo colonial, poderia parecer um empecilho para uma análise da América 2 POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens políticas e econômicas de nossa época. Rio de Janeiro: Contraponto, 2021. p. 99. 3 POLANYI, op. cit, 2021. Sobre as mercadorias fictícias, especialmente os capítulos 6, 14, 15 e 16.
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