Sistemas, tempos e espacos: o Lab-Mundi em dez anos de fazer historiográfico

123 Gustavo dos Santos Rey Saiz portuguesa. No entanto, a Inglaterra analisada por Polanyi e o Brasil ocupam o mesmo espaço temporal e econômico: a expansão colonial europeia no Atlântico. Além disso, a conceituação que Polanyi desenvolve para descrever o movimento geral de formação da economia de mercado fornece instrumentos para pensarmos este processo para além dos limites da Inglaterra e suas colônias, sendo útil para compreendermos o processo da mercantilização da terra no território colonial lusitano. Isto é o que será argumentado nesta parte do texto. Esta discussão será a base para, na próxima parte, uma análise crítica das ideias do autor. Na América colonial portuguesa, a questão da terra tem início com as sesmarias. Como se sabe, as sesmarias foram uma instituição surgida em Portugal no século XIV para organizar a distribuição de terras após a conquista dos reinos muçulmanos. No avanço do seu processo colonial os portugueses utilizaram as sesmarias como forma de distribuição de terras nas ilhas atlânticas (Cabo Verde, Açores, Madeira) e, por fim, na América.4 As sesmarias eram uma instituição baseada na lógica senhorial de doação com contrapartida. Este acesso à terra via doação régia implicava uma série de obrigações aos seus receptores (os sesmeiros): especialmente “povoar” e “aproveitar” a terra, ou seja, produzir; além do pagamento do dízimo (que, ao contrário do que o nome pode indicar, ia na verdade para a Coroa), pago sobre a produção, e não sobre a terra.5 Assim, as sesmarias podem ser vistas como uma manifestação de economia embedded, inserida nas relações sociais: a lógica da reciprocidade6 entre a coroa e seus súditos e o intuito de fomentar o povoamento e a produção agrícola, inclusive de subsistência. Após um prazo de cumprimento das obrigações de povoamento e aproveitamento, os sesmeiros passariam a ter o direito de vender as suas terras. Assim, o comércio de terras estava submetido às obrigações de matiz senhorial, não havendo, sob essa estrutura, um mercado de terras independente, autorregulado. A legislação das sesmarias previa, inclusive, que terras não aproveitadas deveriam voltar à posse da coroa (ser devolvidas, daí a expressão “terras devolutas”) para serem novamente distribuídas. 4 Sobre as sesmarias em Portugal, cf. SILVA, Ligia Osorio. Terras devolutas e latifúndio. Campinas: Unicamp, 2008. p. 41-43. Sobre as sesmarias nas ilhas atlânticas, cf.: LEITE, Antonieta Reis. Urbanística e ordenamento do território na ocupação do Atlântico: as ilhas como laboratório. In: SERRÃO, José Vicente (org.). Property rights, land and territory in the European overseas empires. Lisboa: CEHC; ISCTE-IUL, 2014. p. 67-80; VERÍSSIMO, Nelson. Do mar à serra: a apropriação do solo na ilha da Madeira. In: SERRÃO, José Vicente (org.). Property rights, land and territory in the European overseas empires. Lisboa: CEHC; ISCTE-IUL, 2014. p. 81-88; SOARES, Maria João. Capelas e terras de ónus de missa na ilha do Fogo, Cabo Verde (séculos XVI-XVIII). In: SERRÃO, José Vicente (org.). Property rights, land and territory in the European overseas empires. Lisboa: CEHC; ISCTE-IUL, 2014. p. 115-122. 5 SILVA, op. cit., p. 46. 6 POLANYI, op. cit., 2021, capítulo 4; POLANYI, , op. cit., 2012, p. 83-94, “Formas de integração e estruturas de apoio”.

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