124 Karl Polanyi e a terra como mercadoria no Brasil (séculos XVI – XIX) Esta descrição das sesmarias refere-se, contudo, aos termos da lei. O processo histórico estava além deles. Por um lado, a possibilidade de mercantilização da terra já estava inscrita na legislação das sesmarias. Por outro, nos primeiros séculos de colonização, a coroa tratou tanto a doação quanto a fiscalização das sesmarias com certa liberalidade, abrindo, dessa forma, espaço não apenas para a mercantilização das terras como também para o simples apossamento delas. Em meados do XVII, ocorreu o movimento inverso, quando a Coroa buscou retomar o controle da situação.7 Em paralelo a essas questões também há que se considerar que a implantação do complexo açucareiro ao longo do século XVI contribuiu para o processo de mercantilização aqui analisado. Mesmo com a abertura de novas terras – via desmatamento ou desapropriação dos indígenas –, havia a disputa por aquelas consideradas de melhor qualidade e localização para a instalação dos engenhos. Logo, a chamada “fronteira aberta” não impediu que houvesse a valorização e consequente precificação das terras,8 em um processo que já se dava ao largo da doação de sesmarias. Aqui também é importante ressaltar o papel ambíguo que a Coroa teve no processo de mercantilização das terras, no sentido de dar vazão a concepções econômicas que, nos termos de Polanyi, poderíamos chamar de formais, em oposição às substantivas. Para incentivar a crescente produção açucareira, entre as décadas de 1550 e 1570,9 a Coroa isentou os engenhos do pagamento do dízimo sobre o açúcar durante alguns anos.10 Por um lado, esta ação se inscreve na lógica de “povoar e aproveitar” a terra, presente nas concessões das sesmarias. Mas, por outro, considerando que o dízimo incidia sobre os produtos e não sobre a terra, ao isentar um desses produtos do dízimo a Coroa abria espaço para a compreensão do circuito de produção e circulação do açúcar como algo isolado, como um mercado autorregulado. Por tratar-se de um produto agrícola, esta lógica poderia se estender inclusive às terras que o produziam. Não se trata, evidentemente, da criação de um mercado autorregulado, mas de um passo nessa direção. No século XVII, como dito acima, a Coroa notava a perda de controle sobre as sesmarias e demais terras da sua possessão na América. Para reverter esse quadro, a Coroa editou novas leis que visavam limitar as concessões de 7 SILVA, Terras devolutas e latifúndio, op. cit,. p. 41. 8 Sobre o comércio de terras na economia do açúcar, cf. FERLINI, Vera. Terra, trabalho e poder: o mundo dos engenhos no Nordeste colonial. Bauru: EDUSC, 2003. p. 252-265 9 Alvarás datados de 1551, 1554, 1559, 1560, 1573. INSTITUTO DO AÇÚCAR E DO ÁLCOOL. Documentos para a história do açúcar. Vol. 1: Legislação (1534-1596). Rio de Janeiro: Serviço Especial de Documentação Histórica, 1954. p. 105, 111, 143, 157, 259. 10 SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 37.
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