125 Gustavo dos Santos Rey Saiz terras, particularmente ao longo do século XVIII.11 Ainda no final do XVII, entretanto, outra decisão importante foi tomada. A carta régia de janeiro de 1699 instituiu aos sesmeiros a obrigação do pagamento de um foro à Coroa.12 Ou seja, a carta pretendia limitar a concessão de novas terras por meio do constrangimento econômico. No entanto, é digno de nota que, com isso, a noção de que é possível obter rendimentos a partir da terra, desvinculados de qualquer outro elemento social, chega à esfera estatal. Conforme visto anteriormente, a concessão de sesmarias implicava o pagamento do dízimo sobre a produção; com a carta régia do final do XVII a coroa instituiu a renda da terra desprovida de qualquer caráter não econômico, ainda que motivada por questões não apenas econômicas. Esse é um passo importante no processo de mercantilização da terra, pois aqui, repita-se, a lógica da renda fundiária é expressa pelo Estado. Para Polanyi, o Estado muitas vezes atuou como o agente protetor da sociedade, ao criar leis que impedissem o avanço do mercado autorregulado;13 contudo, este mesmo Estado foi o responsável pela institucionalização da economia de mercado ao retirar legalmente as proteções sociais.14 A situação da América portuguesa pode ser compreendida nesses termos, pois, por um lado, a ação da Coroa visava de fato controlar a apropriação indiscriminada de terras, mas, por outro, acabou contribuindo para o “desenraizamento” (disembeddedness) delas, ao avançar concepções que as tomavam como um fator exclusivamente econômico. Esse processo contraditório continua ao longo do século XVIII. No período pombalino, com a chamada Lei da Boa Razão (1769), a Coroa passa a valorizar outra forma de acesso a terra: a posse.15 Conforme dito anteriormente, a simples tomada de terras foi um modo de apropriação desenvolvido por fora da legislação das sesmarias. Embora ilegal, no século XVIII a posse passa a ser tolerada pelas autoridades por cumprir as duas principais obrigações pressupostas nas sesmarias: povoamento e produção. Aqui observa-se novamente a ambiguidade da ação estatal, ainda que em outra chave. Com a Lei da Boa Razão, o uso da terra passa a ser valorizado, por cumprir os propósitos das sesmarias; entretanto, isso ocorre de forma alheia às normas senhoriais 11 SILVA, op. cit., p. 55. 12 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE. Documentos Históricos. Registo de Cartas Régias, 1697-1705. Pernambuco e Outras Capitanias do Norte, Cartas e Ordens, 1717. Registro da carta de Sua Majestade para o Governador e Capitão Geral deste Estado D. João de Alencastro sobre as terras que se tem dado de sesmaria e se não povoam nem tem povoado, e as proíbem a outros que as não povoem. v. 84. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional. Divisão de Obras Raras e Publicações, 1949. p. 106-107. 13 Discussão realizada especialmente na parte III (“Autoproteção da sociedade”) de A grande transformação. 14 “[O] laissez-faire também foi imposto pelo Estado”. POLANYI, op. cit., 2021, p. 215. 15 MOTTA, Márcia. Nas fronteiras do poder: conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. Niterói: Eduff, 2008. p. 132; ABREU, Marcelo de Paiva; LAGO, Luiz Aranha Correa do; VILLELA, André Arruda. A passos lentos: uma história econômica do Brasil império. São Paulo: Edições 70, 2022. p. 72.
RkJQdWJsaXNoZXIy MjEzNzYz