126 Karl Polanyi e a terra como mercadoria no Brasil (séculos XVI – XIX) que regiam o acesso a ela – o desenraizamento das terras frente às instituições políticas e culturais. Esses processos confluem para o momento quando, no século XIX, a terra é legalmente tratada como “mercadoria fictícia”, nos termos da Lei de Terras de 1850. Anteriormente, na década de 1820, já era patente o movimento em direção a uma organização fundiária alternativa a vigente até então. Em 1822, pouco antes da independência do Brasil, a doação de sesmarias foi suspensa,16 sem que outra forma de acesso a terra fosse criado no lugar. É importante ressaltar que havia naquele período projetos alternativos que previam a distribuição de terras, segundo diferentes critérios.17 Esses projetos podem ser encarados, segundo Polanyi, como formas de proteção da sociedade. Mas, assim como ocorreu na Inglaterra analisada pelo autor, também no Brasil eles foram derrotados, abrindo caminho para a criação do mercado autorregulado. Décadas depois da suspensão das sesmarias, a Lei de Terras foi instituída como a nova base da organização fundiária do país. A lei, no entanto, não pode ser compreendida isoladamente, referindo-se apenas à questão da terra. Como visto acima, para Polanyi o mercado autorregulado pressupõe a livre disposição das mercadorias fictícias, terra, trabalho e dinheiro. A Lei de Terras é parte de um complexo legal que visava regularizar a situação de mercado destes três setores. Nesse sentido, destacam-se três elementos principais sobre a Lei de Terras. Primeiro, a lei definia a compra como única forma de acesso a terra. As sesmarias, conforme dito anteriormente, já estavam suspensas há décadas; quanto à posse, a lei criminalizava a sua prática. Uma curiosa exceção nesse novo sistema fundiário presente na lei é a existência dos “campos de uso comum”, que deviam ser preservados enquanto não se legislava o contrário.18 Este ponto será retomado adiante. Apesar de suspensas e proibidas, a lei previa a possibilidade de regularização das sesmarias e posses, desde que atestados os critérios de ocupação e aproveitamento das terras, ocorridos até a data da lei. Essa revalidação das sesmarias e posses também é expressiva do desenraizamento das terras; considera-se, para fins de legalização, as terras efetivamente produtivas, desconsiderando a forma como elas foram obtidas. Em outras palavras, o uso produtivo das terras garantia a passagem de diferentes formas de apropriação para a lógica da propriedade privada, da mercadoria. 16 Resolução de 17 de julho de 1822. 17 Por exemplo, os formulados por José Bonifácio, ainda em 1821, e Antônio Feijó, em 1828. Cf. MOTTA, op. cit., p. 136-140. 18 ASSEMBLEIA GERAL DO IMPÉRIO DO BRASIL. Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850. Dispõe sobre as terras devolutas do Império. Rio de Janeiro: Assembleia Geral, 18 set. 1850; ALMEIDA, Candido Mendes de. Código Philippino ou Ordenações do Reino de Portugal. Rio de Janeiro: Typographia do Instituto Philomathico, 1870. p. 1085.
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