127 Gustavo dos Santos Rey Saiz O segundo elemento importante da lei, em direção ao mercado autorregulado, é o destino dado às terras públicas e sua relação com a questão da mão de obra. Formulado no bojo das discussões sobre abolição da escravidão,19 o projeto da Lei de Terras era vender as terras públicas para financiar a vinda ao Brasil de trabalhadores imigrantes. Para isso, a regularização das sesmarias e posses era fundamental, pois era parte do processo de medição e demarcação das terras particulares. Através desse inventário das terras particulares seria possível ter mais clareza sobre as públicas. Estas, por sua vez, também medidas e demarcadas, seriam vendidas, subsidiando a vinda ao Brasil de trabalhadores estrangeiros. Para garantir que esses imigrantes fossem integrados ao mercado de trabalho do país, ao invés de tornarem-se proprietários, a Lei de Terras estabelecia um preço mínimo sobre as terras públicas, impedindo assim o acesso dos trabalhadores a elas.20 Deve-se ressaltar que a substituição dos trabalhadores escravizados pelos imigrantes europeus não representava uma transição imediata para o mercado de trabalho “livre”, assalariado, mas apontava para essa direção. Por fim, um último elemento a ser destacado sobre a Lei de Terras refere-se à sua relação com a terceira mercadoria fictícia mencionada por Polanyi, o dinheiro. Ou, mais especificamente, capital. Na primeira metade do século XIX foram elaborados diferentes dispositivos legais referentes à hipoteca e ao uso da propriedade da terra como garantia para crédito (dentre eles, o Código Comercial, editado também em 1850, três meses antes da Lei de Terras). Tratava-se em última instância, de substituir o escravizado pela terra nesse tipo de transação financeira, considerando, novamente, a iminência da abolição da escravidão.21 A Lei de Terras vinha complementar esse projeto com a demarcação e o registro das terras públicas e privadas, garantindo assim segurança jurídica para as transações envolvendo a propriedade fundiária, e contribuindo diretamente para a formação do mercado de capitais. O ano de 1850 foi, como se percebe, extremamente importante para o estabelecimento das “mercadorias fictícias”, fundamentais para o funcionamento do mercado autorregulado. Para encerrar esta exposição sobre a mercantilização da terra no Brasil, cabe uma palavra sobre a questão das “terras de uso comum”. Enquanto na Lei de Terras havia a menção a essa forma de relação com a terra – ainda que sob 19 Vale lembrar que a Lei Eusébio de Queirós, que aboliu o tráfico de escravizados, foi editada duas semanas antes da Lei de Terras. 20 Essa questão foi debatida no parlamento brasileiro, tendo como referência a obra do economista Edward Gibbon Wakefield que tratou do acesso à terra nas colônias inglesas tendo como base essa noção do preço mínimo das terras. Cf. SILVA, op. cit., p. 110-118, p. 121. 21 MARCONDES, Renato Leite; ALMICO, Rita; PEREIRA, Walter Luiz. Relações de crédito no Brasil imperial. In: ALMICO, Rita; PEREIRA, Walter Luiz (org.). História econômica do Brasil Império. Niterói: Eduff; São Paulo: Hucitec, 2022. p. 140-141.
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