Sistemas, tempos e espacos: o Lab-Mundi em dez anos de fazer historiográfico

134 Transformação de estruturas e a reordenação social na Revolução Haitiana pessoas transformaram a si mesmas, e acabaram por também transformar o mundo.7 *** O deslanche do processo revolucionário em Saint-Domingue está intimamente ligado à conjuntura revolucionária mais ampla iniciada com a Revolução Americana e, em especial, com a Revolução Francesa. As discussões sobre autonomia, liberdade e igualdade que circulavam no mundo Atlântico escancaravam todas as contradições que vinham se tornando irreconciliáveis na colônia naquele final de século. Em primeiro lugar, a vertiginosa expansão produtiva de commodities levou a uma crescente insatisfação por parte dos colonos com a prática monopolista do comércio metropolitano. Além disso, a expansão do grupo de brancos de poucas rendas (os chamados petits blancs) em busca de enriquecimento no Novo Mundo era contrastado pela existência de um alargado grupo de afrodescendentes livres, alguns dos quais retentores de grandes posses, que se viram tolhidos dos direitos de cidadania compreendidos no Code Noir. Ao mesmo tempo, as últimas quatro décadas do Setecentos foram marcadas pelo recorde de desembarques de africanos na condição de escravizados trazidos pelo tráfico transatlântico para suprir a demanda exponencial por mão-de-obra nas plantations. Dinâmica essa que promoveu uma disparidade demográfica gritante – uma das maiores do continente –, em que 89% da população era composta por escravos.8 Inseridos nesse cenário, e na esteira dos acontecimentos franceses, agitações sociais tomaram conta de Saint-Domingue a partir de 1790, quando a busca dos colonos por autonomia econômica e dos afrodescendentes livres e libertos por direitos civis e políticos se transformou em conflito armado aberto entre os estratos livres domingoises. Apesar de dissidências entre as camadas livres serem parte formativa das sociedades coloniais, aqueles confrontos de 1790 tomaram proporções extraordinárias, espalhadas por quase toda a ilha. Na observação dessas circunstâncias, os escravizados se articularam e organizaram sua própria luta, a qual, mesmo que não visasse inicialmente a abolição geral da escravidão, logo se tornou uma revolução em nome da liberdade. O surgimento de uma insurreição escrava de tamanha proporção, que em poucas semanas contou com dezenas de milhares de revoltosos, rapidamente mudou o cenário de ação na colônia em dimensões jamais vistas. A revolta abalou a posição da França dentro de sua própria possessão, incapaz de conter qualquer avanço do movimento insurgente. O ataque direto ao sistema de plantations por parte dos escravos rebelados, somados a fuga acelerada de colonos para outros espaços do Atlântico, quebrou com a disciplina produ7 COSTA, op. cit., p. 19. 8 MOREAU DE SAINT-MÉRY, M.J-E. Description Topographique, Physique, Civile, Politique et Historique de la Partie Française de l’isle de Saint-Domingue. 2. ed. Paris: L. Guérin, 1875. 3 v.

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