Sistemas, tempos e espacos: o Lab-Mundi em dez anos de fazer historiográfico

135 Isabela Rodrigues de Souza tiva das mais importantes propriedades de Saint-Domingue – e, pode-se até mesmo dizer, das Américas. Outras potências europeias, como Espanha e Grã- -Bretanha, passaram a interferir diretamente na guerra revolucionária local, movidas por seus próprios interesses colonialistas. Diante de tal conjuntura frágil para o poder metropolitano em sua mais importante colônia, os comissários franceses enviados pela Convenção Nacional viram na abolição geral da escravidão a solução efetiva para seus problemas. Pensava-se que a emancipação atrairia os revoltosos para lutar em nome da França, condição essencial para reconquistar o controle sobre Saint- -Domingue. Por uma combinação de circunstâncias históricas, Léger-Félicité Sonthonax se aproveitou dos acontecimentos postos em curso pelos escravizados para consumar o que já fazia parte de seus princípio, a abolição da escravidão, finalmente decretada em 29 de agosto de 1793. Diferente do que ele projetava, contudo, a conjuntura pós-emancipação centralizaria o conflito capital da Revolução: a disputa pela definição do que seria essa nova liberdade, que implicava diferentes modos de reorganização da ordem social e econômica da colônia. De um lado, as exigências bélicas urgentes para manutenção da guerra, cada vez pior para o lado francês, atribuíram à abolição de Sonthonax uma interpretação clara: malgrado prever a extensão da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão aos novos libertos, o decreto de agosto ordenava uma série de deveres atrelados à liberdade. Levando em consideração a grave situação da França no continente europeu naquele momento, abertamente em confronto com diversos países, estava claro que o governo metropolitano seria incapaz de satisfazer as demandas militares básicas em Saint-Domingue. A produção de commodities para exportação, responsável pela imensa riqueza da época pré-revolucionária, foi a maneira selecionada pelos comissários para sustentar a economia de guerra. O decreto de 1793 categoricamente determinou que a liberdade advinda da abolição pressupunha a continuidade do trabalho e, numa colônia que fora escravista, isso significava a continuidade do trabalho nas plantations, agora com base no assalariamento dos antigos cativos.9 Circunscrita ao sistema de plantations, portanto, sua concretização passava pela implementação de rígidos mecanismos de controle aos próprios libertos para garantir o retorno da capacidade produtiva.10 Para a massa de ex-escravos, entretanto, a liberdade envolvia uma outra relação com a terra e com o trabalho, envolvendo a possessão de um peque9 FICK, Carolyn. Emancipation in Haiti: From plantation labour to peasant proprietorship. Slavery & Abolition: A Journal of Slave and Post-Slave Studies, v. 21, n. 2, p. 11-40, 2000. p. 17. 10 MANIGAT, Sabine. Le Régime de Toussaint Louverture en 1801: un modèle, une exception. In: BÉNOT, Yves; DORIGNY, Marcel (org.).1802: Rétablissement de l’esclavage dans les colonies françaises, ruptures et continuités de la politique coloniale française, 1800-1830: aux origines d’Haïti. Paris: Maisonneuve et Larose, 2003. p. 371.

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