136 Transformação de estruturas e a reordenação social na Revolução Haitiana no lote de terra a partir do qual viveriam do cultivo de víveres e criação de animais. Essa concepção estava intimamente ligada a estruturas sociais africanas mais antigas, de onde provinha a grande maioria dos cativos em Saint-Domingue, mas também a práticas desenvolvidas por essas pessoas nos interstícios do sistema de plantation no Novo Mundo.11 Mesmo quando violentamente subjugados pela relação social da escravidão, eles encontraram espaços de autoafirmação e autonomia na posse das roças próprias de subsistência. Se para os senhores o cultivo de subsistência em pequenos lotes de terra era um modo pouco custoso de assegurar o provimento da mão de obra, para os cativos era uma maneira de manejar parcialmente as condições materiais e sociais de sua reprodução.12 Por meio desses espaços de adaptação criativa, existentes dentro das condições repressivas a que eram obrigados a viver, os escravizados acomodaram um estilo de vida camponês (chamado de “proto-campesinato” por Sidney Mintz) ainda durante a escravidão.13 A noção de liberdade desenvolvida pela população escrava durante a Revolução estava estreitamente relacionada a esse modo de vida camponês afro-caribenho. Se as roças de subsistência eram uma arena social e econômica de autorrealização para essas pessoas na escravidão, uma vez libertas, elas almejavam reproduzi-las independentemente, fora do confinamento das plantations.14 Assim, a liberdade tal como promulgada pelos comissários e desenvolvida pelos líderes negros, constrangida ao sistema de trabalho coletivo nas plantations, muito se parecia com o regime da escravidão para os ex-cativos.15 No geral, não se sentiam libertos, não obstante estivessem emancipados. Sendo assim, a luta pela liberdade dos novos libertos permaneceu mesmo depois da abolição geral de 1793. Dentro de um contexto desconhecido e oscilante para ambas as partes, eles se apoderaram do que consideravam ser seus direitos uma vez livres. Até o início da guerra de independência em 1802, a fuga das plantations era a estratégia mais comum encontrada pelos cultivadores para se verem livres do sufocante complexo fundiário monocultor; contemporâneos chegaram a afir11 CARDOSO, Ciro Flamarion. A Brecha Camponesa no Sistema Escravista. In: WELCH, Clifford A. et al. Camponeses brasileiros. São Paulo: UNESP, 2009. v. 1. p. 97-115, p. 109; GONZALEZ, Johnhenry. Maroon Nation: A History of Revolutionary Haiti. New Haven: Yale University Press, 2019. p. 37. 12 Cf. TOMICH, Dale W. Slavery in the circuit of sugar: Martinique and the world economy, 1830-1848. 2. ed. Albany: State University of New York Press, 2016. p. 368; MINTZ, Sidney. Caribbean Transformations. New York: Columbia University Press, 1989. p. 132. 13 MINTZ, op. cit., p. 151-152. 14 MURRAY, Gerald F. The Evolution of Haitian Peasant Land Tenure: a case study in agrarian adaptation to popular growth. 1977. 693 f. Tese (Doutorado em Ciências Políticas) – Faculty of Political Science, Columbia University, New York, 1977. p. 47-49. 15 Cf. FICK, Carolyn. Para uma (re)definição de liberdade: a Revolução no Haiti e os paradigmas da Liberdade e Igualdade. Estudos Afro-Asiáticos, ano 26, n. 2, p. 355-380, 2004. p. 371.
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