138 Transformação de estruturas e a reordenação social na Revolução Haitiana abolicionista, que se fortalecia nos centros urbanos do Atlântico Norte, era partilhada pelos comissários franceses enviados à agitada colônia caribenha naquela conjuntura. Ideologia e necessidades materiais locais, em conjunto com as urgências de uma economia de guerra, confluíram para que, no momento da emancipação geral, se criasse uma oposição binária entre escravidão e outras formas de sujeição laboral, que estaria na base do novo arranjo social para Saint-Domingue. Nesse sentido, a concepção de liberdade das lideranças revolucionárias remetia a uma nova combinação de valores: o da liberdade com o trabalho assalariado. Esse era um elo que também não estava completamente claro para as autoridades. Isso porque ele foi artificialmente criado para responder aos problemas econômicos da colônia enquanto satisfazia a máxima da luta revolucionária, qual fosse a defesa da abolição geral da escravidão promulgada pelo regime republicano. Como afirmamos acima, a permanência do complexo produtivo escravista, porém sem escravidão, foi apresentado, pelas lideranças, como sendo crucial para a própria conservação da ordem revolucionária. A associação desses elementos foi fruto das demandas e ambições imediatas das autoridades coloniais dentro de um contexto de extrema conturbação e incerteza Não sem motivo a passagem da escravidão para a emancipação dependeria, para elas, do controle sobre a mão de obra, feito por meio de mecanismos coercitivos oficiais de subordinação que transformariam os novos libertos em trabalhadores assalariados nas plantations. Criou-se, assim, um entendimento de liberdade original, em que trabalho assalariado dos ex-escravos era a condição para o novo arranjo social da colônia francesa.18 É evidente que, para os ex-escravos, esta nova estruturação do trabalho era inaceitável, já que o exercício da liberdade nunca seria absoluto enquanto estivesse limitado à subordinação ao trabalho compulsório – mesmo que remunerado – nas plantations onde haviam sido brutalmente explorados por tanto tempo. A autonomia individual na reprodução material de suas vidas era chave fundamental para a relação entre liberdade e trabalho. Porém, essa era uma percepção de certa forma generalizada antes da emergência da ordem capitalista industrial, em que ser livre no trabalho pressupunha o controle sobre os meios de produção e ritmos de labor, isto é, ao pressuposto da não-dependência completa para sobreviver. No final do século XVIII – e até por boa parte do XIX – a dependência e a subordinação a outrem presentes na relação assalariada eram consideradas degradantes, logo, equivalentes à ausência de liberdade.19 Assim como o servo ou até mesmo o escravo, o assala18 Cf. FONER, Eric. Nada além da liberdade: a emancipação e seu legado. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 19-20. 19 FONER, Eric. Free Soil, Free Labor, Free Men: The Ideology of the Republican Party Before the Civil War. (1st ed. 1970). New York: Oxford University Press, 1995. p. xii.
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