139 Isabela Rodrigues de Souza riado era visto antes de tudo como um dependente, sujeito a diversos tipos de compulsão, ainda que em graus diferentes, para a execução do trabalho.20 E isso valia tanto para os escravizados de Saint-Domingue como para os camponeses europeus que estavam sendo compelidos, naquele exato momento, ao trabalho fabril. Dado seus conteúdos profundamente coercitivos, os regimentos laborais elaborados pelas autoridades revolucionárias na colônia francesa traduziam todas as contradições contidas no nascimento da construção ideológica do trabalho assalariado como livre, e não mais como dependente. Na visão antiescravista europeia, a singularidade perniciosa da escravidão revelava a dicotomia entre as coerções ilegítimas presentes no cativeiro e as condições próprias do trabalhado assalariado. Se o cativeiro foi concebido como o intolerante extremo deste espectro, as demais categorias de exploração do trabalho puderam ser construídas ideologicamente como legítimas e, em consequência, como equivalentes à liberdade.21 Sendo assim, o embate das liberdades da Revolução Haitiana, no limite, esteve envolvido também num processo mais profundo de transformação do trabalho assalariado como equivalente a ser livre. Se o pensamento abolicionista passou a defender essa assimetria em meio ao desenvolvimento da ordem capitalista industrial, as autoridades revolucionárias francesas a projetaram na emergência de um novo tipo de trabalho com o fim da escravidão. Esse contraste, contudo, não eliminou os modos de compulsão pelos quais os trabalhadores eram subjugados em nenhum dos espaços onde essa disputa se encontrava.22 Em Saint-Domingue, sem embargo, a resistência da população liberta permaneceu incomplacente à imposição do trabalho assalariado nas plantations até a consolidação do campesinato nas primeiras décadas do Haiti independente. *** Conforme apresentado brevemente aqui, as disputas por práticas e concepções distintas de liberdade, fundadas em diferentes projetos de ordem econômica e social na colônia, são o cerne desse evento transformador que foi a Revolução Haitiana. Concepções essas que tinham seus laços com antigas estruturas, mas que se desenvolveram e ganharam novo peso e significado em meio às contingências desse contexto de transformação, diante de cená20 VAN DER LINDEN, Marcel. Workers of the World: essays toward a global labor history. Leiden: Brill, 2008. p. 32-33. 21 Cf. MARQUESE, Rafael. Comentário. Escravidão histórica e capitalismo histórico: notas para um embate. In: MUAZE, Mariana; SALLES, Ricardo. A segunda escravidão e o império do Brasil em perspectiva histórica. São Leopoldo: Casa Leiria, 2020. p. 75-89. p. 81-82; STEINFELD, Robert. Coercion, Contract and Free Labor in the Nineteenth Century. New York: Cambridge University Press, 2001. p. 47 e p. 72. 22 FONER, op. cit., 1995, p. x-xi.
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