Sistemas, tempos e espacos: o Lab-Mundi em dez anos de fazer historiográfico

171 Kelly Eleutério Machado Oliveira ra dos Reis, em tom jocoso, o autor não só se esforçou em desmentir as acusações, como ridicularizou o estudante, chamado por ele de “José da Véstia”. José Fidélis fez chiste de seus trajes maltrapilhos, dos piolhos que habitavam seus cabelos e do pouco estilo de sua carta, a qual deveria ser “depositada no Arquivo da Torre das Asneira para a perpétua glória de seu autor”. Por vezes, a ironia do missivista pareceu assumir feições mais do que pessoais. Ao fazer uso, com alguma frequência das designações “sabichão brasílico”, “herói brasileiro”, “escrevedor da tupinambá epístola”, “não é qualquer caigua ou tupinambá” e “americano juvenal”, o autor da missiva parece impingir ao estudante de Coimbra uma crítica também identitária, numa espécie de antibrasilianismo. Assim, essas missivas acabam por revelar também a complexidade que atravessava o universo do “ser brasileiro” e do “ser português”.26 Ofendido com o conteúdo da missiva de José Fidélis, Sátiro lançou a tréplica “duas palavras acerca da carta de José Fidelis da Boa Morte”. Incrédulo e colérico, afirmou, marcando bem o seu “ser brasileiro”: Lembre-se senhor Fidélis, que eu sou brasileiro e nenhum interesse tinha em que v. m fosse livre ou escravo que marchei a pé desde Coimbra até as raias da Galiza, carregado com uma arma, 60 cartuxos desde as raias da Galiza continuei a marchar a pé até Ferrol, sofrendo a guerra da fome, da calma, do frio, etc. Os meus pés verteram muitas vezes sangue, o meu corpo passou muitas noites sobre o tojo, e enquanto eu fazia estes sacrifícios pela sua pátria, sr. compatriota da preguiça, estava v. m em Lisboa vendo a sangue frio as entranhas da Mãe comum dos portugueses dilaceradas pelo tirano. Alma vil, e abjeta, quando eu esquecendo-me de que a minha pátria estivera 300 e tantos anos curvada sob os ferros de Portugal, levei a minha generosidade ao ponto de perdoar aos portugueses as cicatrizes de meus compatriotas, os quais na Bahia ainda tem feridas gotejando; quando em tua defesa perdi o meu curso literário, e os bens que tinha em Coimbra, passando trabalhos, que apenas se poderiam imaginar Nós cá vamos para o Brasil; venha v, m, se quer, traga as ordens do dia de Cândido, que eu as levo também para lá as conferirmos, e discutirmos à vista do meu imperador e seu rei.27 E continuou, impávido: quando a pátria clama a seus filhos, quais serão as considerações que os retenham? Ah! Patifes, o que isso quer dizer, sei eu, mas nem todos 26 Reforça ainda mais essa complexidade a discussão apresentada pela historiadora portuguesa Isabel Corrêa da Silva. Brasileiro também era chamado o português que emigrava para o Brasil e depois retornava a Portugal: português no Brasil e brasileiro em Portugal. As considerações da autora, cujas pesquisas se concentram, sobretudo na segunda metade do século XIX e no estudo da emigração social e de massa, certamente acrescentam novos elementos ao universo do “ser brasileiro” e do “ser português” (, 2024). 27 Biblioteca Nacional de Portugal. Duas palavras acerca da carta de José Fidelis da Boa Morte. Plymouth, 31 de dezembro de 1828, p. 9 e 10.

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