Sistemas, tempos e espacos: o Lab-Mundi em dez anos de fazer historiográfico

189 Lucas Mohallem Ainda que profundamente temporalizado, o jusnaturalismo moderno não gozava, contudo, de uma vocação intrinsecamente revolucionária. De meados do século XVII até o último quartel do século XVIII, o Direito Natural – e aqui nos referimos especialmente às vertentes racionalistas e individualistas desta linguagem – foi uma espécie de “língua franca” da cultura ocidental. De Leste a Oeste, do Norte ao Sul, do católico ao protestante e deísta: por todo o Ocidente, pululavam manifestações de um jusnaturalismo com significados os mais diversos.7 A ampla difusão experimentada por essa linguagem nessas circunstâncias deveu-se, em primeiro lugar, a sua potencial laicidade.8 A ideia de que os fundamentos da Ética pudessem ser aferidos por meio de uma faculdade comum a todos os seres humanos – a Razão – exerceu grande fascínio sobre uma geração para qual os traumas da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) e da intolerância religiosa permaneciam vivos. A inexistência de um vínculo que prendesse o Direito Natural a um campo confessional específico tornava-o uma linguagem muito apropriada para reger as relações de poder no saeculum, fazendo-o passível de uma apropriação diversa e generalizada, sem discriminação de facção.9 Em segundo lugar, a transversalidade do Direito Natural deveu-se à sua grande plasticidade política. Conforme aponta A. L Harding, o Direito Natural desempenhou, historicamente, um papel paradoxal, servindo simultaneamente como um estímulo para a reforma, e como um baluarte contra a mudança.10 Nos séculos XVII e XVIII, esta pluralidade de suas vocações tornar-se-ia ainda mais evidente. Fora para viabilizar os direitos do indivíduo, ameaçados pelos impulsos fratricidas do homem, que Hobbes elaborara o contrato societário absolutista apresentado em O Leviatã. Locke também partira de direitos abstratos e precedentes à sociedade civil ao propor o que viria a se tornar uma das mais sofisticadas e sistemáticas teses da soberania popular. Mesmo Groccius e Puffendorf, autores decididamente organicistas e anticontratualistas – isto é, refratários à noção de que o poder político resultava de um acordo voluntário – também enxergavam o processo de constituição da sociedade civil como sendo presidido pelos interesses de autopreservação do indivíduo e de seus direitos.11 7 LOPES, José Reinaldo de Lima. Iluminismo e jusnaturalismo no ideário dos juristas da primeira metade do século XIX. In: JANCSÓ, István (org.). Brasil: Formação do Estado e da Nação. São Paulo: Hucitec; Fapesp; Ijuí: Unijuí, 2003. 8 HESPANHA, António Manuel. A Cultura Jurídica Europeia: Síntese de um Milénio. Coimbra: Almedina, 2012. 9 PRODI, Paolo; JANNINI, Karina. Uma História da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 10 HARDING, A. L. A Reviving Natural Law. In: HARDING, A. L. Natural law and natural rights. Dallas: Southern Methodist University Press, 1955. p. 71. 11 TUCK, Richard. The “modern” theory of natural law. In: PAGDEN, Anthony (org.). The Languages of Political Theory in Early-Modern Europe. Cambridge; Nova Iorque: Cambridge University Press, 1987. p. 99-120. Para um compelente exemplo dessa nova modalidade de Direito Natural temporalizado,

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