227 Nicole L. Bianchini artístico, levando a um cenário em que se produzia muito mais arte religiosa e histórica do que representações do mundo urbano que poderiam conter esse tipo de consumo.26 No campo mental, sobreviviam visões sobre o “oriente” herdadas do século anterior, mas a disseminação das cafeterias no noroeste europeu e os contatos domésticos com o consumo das bebidas trouxe uma novidade. Mesclaram-se às percepções apontadas anteriormente sobre as culturas otomana e chinesa a movimentos letrados intensificados em meados do século XVII que promoviam um estilo de vida baseados em valores em ascensão como a civilidade e o polimento. Tais valores foram particularmente fortes na Inglaterra, onde vertentes do puritanismo valorizavam o aprimoramento individual baseado em valores como o trabalho e o autocontrole27 e se fortaleceram dentre setores urbanos. Periódicos muito importantes para a difusão dessas ideias, como o The Spectator, eram editados dentro de cafeterias, e tinham a agenda explícita de construir um estilo de vida que ao mesmo tempo podia exaltar o acesso a bens materiais como sinalizador de prosperidade e conhecimento do mundo, como antítese do exagero desmedido da nobreza ou ser criticado por ser justamente o elemento de ruína moral europeia ao estrangeiro e luxurioso.28 Este, entretanto, não pode ser considerado um processo de ruptura total com estruturas sociais mais longas de predomínio de valores ligados à aristocracia e monarquia. Politicamente, o projeto de civilidade urbana floresceu no período pós-Restauração Stuart, quando cafeterias sofreram escrutínio e algumas tentativas de proibição pela Coroa por serem um espaço de sociabilidade razoavelmente livre. Na França, coexistiram com o governo monárquico de modo ininterrupto desde o século XVII. Visualmente, essas permanências podem ser vistas em boa parte da produção pictórica do século XVIII. Mesmo quando café e chá passaram a ser representados em retratos familiares que adotavam princípios como a simetria para denotar harmonia e prosperidade material de setores não necessariamente aristocráticos, os padrões estéticos valorizados eram aqueles alinhados com valores correntes daquele grupo. Não foi encontrada, até o momento, nenhuma imagem desse período que questionasse a ordem social na qual essas famílias estavam inseridas. Pelo contrário: ao que parece, tais representações empregaram a materialidade importada, como o consumo de café e chá, para inserir os sujeitos representados 26 No caso da arte italiana, isso se mostra evidente, já que a maioria das imagens dessa temática são venezianas, onde o comércio desses produtos era forte. São raríssimas imagens semelhantes de outras cidades ou regiões. 27 HILL, Christopher. The world turned upside down: radical ideas during the English Revolution. Londres: Penguin Books, 2019. p. 248. 28 COWAN, Brian. Mr. Spectator and the Coffeehouse Public SphereAuthor. Eighteenth-Century Studies, v. 37, n. 3, p. 345-366, 2004.
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