248 A Guerra de Sessenta Anos. A região-mundo platina e as causas do conflito de 1864 La Blache, fez da bacia do Prata um imenso atalho para o comércio atlântico ou, internamente, para a administração de parcelas territoriais, como então o Mato Grosso, muito distantes das capitais coloniais e depois nacionais.7 Concorrido, o atalho se tornaria um lugar de confluência de pessoas, ideias e mercadorias, em particular no quadrilátero situado entre Buenos Aires, Potosí, Assunção e Montevidéu, onde se moldou um espaço vivido, na fórmula do geógrafo André Frémont, ou de experiência, na do historiador Reinhart Koselleck. Nesse passadiço para encurtar o tempo, surgiria um cotidiano platino, próprio à longa duração e irredutível ao estereotipo sociocultural do gaucho. Objeto de pertencimento subjetivo para Frémont, a região na ocorrência do Prata se constituiu como um universo, também, porque se fez como lugar de contato entre mineiros e escravos, lavradores e portuários, pecuaristas, senhores e administradores. Em outros termos, foi desse mundo de relações que se formaram, ainda como coletividades rapidamente organizadas em classes, as partes constitutivas de uma totalidade. Aqui, o espaço vivido é no fundo uma experiência relacional, caracterizada por interesses ora coincidentes, ora opostos.8 Sem forçosamente ser uma unidade geofísica, embora no caso platino os rios fossem o lugar privilegiado de contato, a região-mundo é sobretudo uma questão de tempo. É unicamente na dilatação das décadas que se vislumbra uma constância propriamente, no caso, platina. Essa permanência, sustentada no recorrente exercício de uma prática ou de um interesse, revela em primeiro lugar um obstáculo. Trocando em miúdos, a ação de uma parte não é apenas condicionada espacialmente por aquela de outra parte – ou pelo conjunto de relações entre partes, que formam no tempo uma totalidade sistêmica aqui chamada de região-mundo –, mas igualmente pelas constâncias históricas que persistem na própria transformação das ações. Antes de ser um projeto, portanto, a agência é aqui uma passividade, caracterizada pela interiorização das contradições que precederam as próprias ações. O espaço de experiencia, na formulação de Koselleck, é assim basilar para a região-mundo, em razão das delimitações espaciais e temporais que produz para a caracterização das partes relativas a um todo. O passado comum – sugerido por Wilma Peres Costa na bipartição do Prata entre as fases colonial e nacional ou endossado por Thomas Whigham numa trajetória com quase cem páginas de volta ao século XVIII9 – é necessário, porém nesta 7 Para o pensamento geográfico de La Blache, ver: LA BLACHE, Paul Vidal de. Principes de géographie humaine. Lyon: ENS, 2015. 8 Para as já clássicas formulações, ver respectivamente: FRÉMONT, Armand. La région, espace vécu. Paris: Flammarion, 1999; e KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo. Estudos sobre História. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2014. 9 COSTA, Wilma Peres. A espada de Dâmocles. O Exército, a Guerra do Paraguai e a crise do Império. São Paulo: Unicamp, 1996; WHIGHAM, Thomas L. The ParaguayanWar: Causes and Early Conduct. Calgary: University of Calgary Press, 2018.
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