269 Sarah Tortora Boscov Não se tratava mais de apreciar imagens do gênero natureza morta, que perfaziam o topo dos temas artísticos até então37 e que continha em si a concepção tempo fluído que não poderia ser retido, a não ser, pela pintura que traduziria a tentativa de interrupção do fluxo temporal gerada pelo incômodo da finitude.38 No desenho de Ender há a valorização do instante, porém, baseado na prática do estudo dos detalhes até que a natureza, no caso de pintores viajantes, fosse memorizada.39 Nesse sentido o desenho acima é carregado de nova temporalidade entendida como moderna, por valorizar o seu presente, o tempo curto, o seu instante, mas também, comporta a tradição clássica do qual os arquétipos de beleza e simetria eram inspiradores, e encontrariam na natureza tropical seu par estético orgânico. É um pequeno exemplo de originalidade e de tempo presentes nessa imagem, modernidade e tradição, que por si sós são também conceitos que foram ressignificados ao longo do tempo, e tal qual atesta Koselleck, concentram em seu interior uma multiplicidade de significados solidificados apresentando, também, camadas temporais suscetíveis de serem recuperadas.40 O passado inspirava a técnica e a forma, o presente a materializava dando luz a um novo gênero artístico. Importa destacar que pinturas de paisagens eram relativamente comuns, contudo, o que há de novo naquele momento é o interesse em moldar o passado clássico em um instante tido como inalterado, no caso aqui retratado como natureza tropical. Outro ponto interessante a ser ressaltado é que o esboço do desenho de Ender foi produzido em 1817, mas só veio a público em 1846. Existiu um intervalo temporal entre a produção e a elaboração da obra propriamente dita, por isso, também, a valorização da memória, do que foi visto e do que foi vivido como instrumento para a conclusão do desenho. No momento em que o artista se debruçasse para desenvolver sua imagem, recorreria à experiência vivida a qual seria revivida naquele presente e teria o poder de alterar o que foi visto de fato para o que seria reproduzido e legado a posteridade. As imagens podem ser consideradas únicas, porém, da mesma maneira que a história, se apoiam em padrões de repetibilidade que não se esgotam em sua unicidade. Isso decorre do fato de que os agentes de dado momento da história deixam suas marcas, que em conjunto com a possibilidade de repetição, tornam-se material para a longa duração do tempo, sobretudo do tempo 37 LEE, Francis Melvin. Instruir de maneira intensa e imediata: circulação e uso de estampas no Brasil joanino. 2014. 395 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. 38 Cabe a nós destacarmos que boa parte das imagens contém em si o esforço de aprisionamento do tempo e interrupção de sua passagem, todavia o gênero natureza morta é esse esforço explícito dentro da tradição artística. 39 DIENER; COSTA, op. cit. 40 KOSELLECK, op. cit., p. 109.
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