45 Leonardo Marques e Waldomiro Lourenço da Silva Júnior especialmente no campo da teoria da história, como também por permitir alinhavar nosso argumento, refazendo a costura malfeita. A caricatura do modelo de Braudel, especialmente em contraste a Koselleck, parte da falta de aprofundamento no estudo da concepção de tempo delineada em sua obra. A maioria dos comentadores leem apenas o artigo de 1958 enquanto percorrem o conjunto da obra do historiador alemão. Os historiadores Cristophe Bonneuil e Jean-Baptiste Fressoz, por exemplo, que oferecem uma crítica brilhante de uma certa dimensão novidadeira que perpassa todo o discurso em torno do assim chamado antropoceno, recaem em problema semelhante ao resumir o modelo braudeliano a uma estrutura de três temporalidades, marcada por uma suposta “separação das áreas e dos tempos entre natureza e sociedade, herdada da modernidade industrial”.18 Carlos Aguirre Rojas não exagera, portanto, quando fala em uma “versão absolutamente limitada e vulgarizada” da longa duração braudeliana, como evidenciado pela obra recente de Simon e Tamm (dentre tantos outros exemplos possíveis). A solução para tal limitação, nas palavras do mesmo autor, está na “própria obra de Fernand Braudel, que “[...] poderia ser considerada como um vasto conjunto de múltiplos exercícios ou ensaios de ‘descoberta’ e de ‘aplicação’ das perspectivas da longa duração histórica”.19 Quem percorre com atenção as páginas de suas obras maiores, O Mediterrâneo e Civilização Material, percebe que Braudel supera em muito um esquema piramidal estanque. As dimensões temporais ganham substância, articulação e fluidez de muitas formas, para além de suas assertivas no artigo de 1958. Elas emergem na arquitetura dos livros, no modelo explicativo adotado, nos conceitos empregados, na fórmula narrativa, no contorno das descrições, nas comparações realizadas, na costura dos argumentos, na insinuação, na sugestão, na sagacidade, nas amarrações. Braudel dá o peixe e ensina a pescar. De certa forma, o que Koselleck faz é sintetizar e traduzir em teoria processos e combinações temporais já presentes nos escritos de Braudel. Em artigo de 2018, Rafael Marquese e um dos autores do presente capítulo defenderam a tese de que Koselleck se apropriou do modelo de Braudel, desenvolvendo-o mediante um duplo procedimento de condensação e complexificação, que tornou mais nítidas as feições dos estratos e ritmos temporais, suas sobreposições e entrecruzamentos.20 O discernimento de níveis da realidade de 18 Para uma crítica mais detalhada, ver MARQUES, Leonardo. Para além do grande despertar ambiental: visões da natureza humana e extra-humana na história econômica e social. In: TURIN, R., LOWANDE, W. Antropoceno: perspectivas historiográficas. Rio de Janeiro: NAU, 2024; BONNEUIL, Christophe; FRESSOZ, Jean-Baptiste. O acontecimento Antropoceno: A Terra, a história e nós. São Paulo, SP: Quina, 2024. p. 65. 19 AGUIRRE ROJAS, Carlos Antonio. Braudel, o mundo e o Brasil. São Paulo: Cortez, 2003. p. 64. 20 MARQUESE, Rafael de Bivar; SILVA JÚNIOR, Waldomiro Lourenço. Tempos históricos plurais: Braudel, Koselleck e o problema da escravidão negra nas Américas. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, v. 11, n. 28, 8 dez. 2018.
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