Sistemas, tempos e espacos: o Lab-Mundi em dez anos de fazer historiográfico

53 Alberto Camargo Portella colonial, foi mais um sinal do caráter capitalista de parte daquela produção. Nessa zona da economia atlântica, “o dinheiro, o crédito, os tráficos, as trocas” teceram uma ligação com a “margem oriental do oceano”. O cultivo comercial na América foi exemplo de atividade em que os capitalistas visaram lucros no mundo produtivo, a casa alheia citada por Braudel para aquela época, haja vista a então preferência pelos ganhos na circulação. Lucros associados depois à comercialização do cereal, principalmente no mercado português.10 Percebemos o caráter duplo do cereal, pois ao mesmo tempo em que sua produção atraiu capitais em busca de lucros, não deixou de ser um produto relacionado à vida material, provavelmente cultivado em roças de camponeses para subsistência ou venda local. Sinal claro da forma como o grão se encaixou em distintas temporalidades, uma ligada à lógica de longa duração da vida material da população, da alimentação camponesa e das técnicas de trabalho há muito estabelecidas, e outra, ao tempo da escravidão atlântica e dos empreendimentos capitalistas na América. Sem contar a necessária articulação ao mundo do consumo e às suas dinâmicas temporais, pois esse mesmo grão despontou na Europa enquanto item secundário e substitutivo e, no século XVIII, passou a desempenhar um papel fundamental na alimentação de populações pobres ou marginalizadas. O cultivo do grão ofereceu, portanto, um horizonte privilegiado para a compreensão de amplas realidades, como o consumo e os desenvolvimentos temporalmente variados da moderna economia europeia e atlântica.11 10 Para a diferenciação entre vida material, economia de mercado e capitalismo, consultar BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo. Séculos XV-XVIII: as estruturas do cotidiano. Volume 1. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 11-12; BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo. Séculos XV-XVIII: os jogos das trocas. Volume 2. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 199-258 (a citação está na p. 237); ver também BRAUDEL, Fernand. Uma lição de história de Fernand Braudel – Châteauvallon, Jornadas Fernand Braudel, 18, 19 e 20 de outubro de 1985. Rio de Janeiro: Zahar, 1989, p. 115-118. Para um trabalho que abordou a produção escravista de arroz na América lusa e citou a criação de uma companhia comercial, ver BARROSO JÚNIOR, Reinaldo dos S. Nas rotas do atlântico equatorial: tráfico de escravos rizicultores da Alta-Guiné para o Maranhão (1770 – 1800). 2009. 119 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2009; também ALDEN, Dauril. Late colonial Brazil, 1750-1808. In: BETHELL, Leslie (org.). The Cambridge History of Latin America. Volume II. Colonial Latin America. 4. reimp. Cambridge; New York; Melbourne: Cambridge University Press, 1997, p. 622-623; para outro que indicou a produção de “sitiantes”, ver HOLANDA, Sérgio B. de. O arroz em São Paulo na era colonial. In: COSTA, Marcos (org.). Sérgio Buarque de Holanda: escritos coligidos – livro I – 1920-1949. São Paulo: Editora Unesp; Fundação Perseu Abramo, 2011, p. 340-345. Para as exportações de arroz da América portuguesa, ver SANTOS, Corsino M. dos. Cultura, indústria e comércio de arroz no Brasil colonial. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 318, 1978. p. 56. 11 Ver COCLANIS, Peter A. The road to commodity hell: the rise and fall of the first American rice industry. In: FOLLETT, Richard; BECKERT, Sven; COCLANIS, Peter A.; HAHN, Barbada. Plantation Kingdom: the American South and its global commodities. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2016. p. 24-26. Sobre o modo como um cultivo, ou uma commodity, pode oferecer considerações sobre realidades mais amplas, ver MARQUESE, Rafael de B.; MARQUES, Leonardo. Ouro, café e escravos: o Brasil e a assim chamada acumulação primitiva. In: MARQUESE, Rafael de B. Os tempos plurais da escravidão no Brasil: ensaios de História e Historiografia. São Paulo: Intermeios, 2020; tam-

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