54 A Economia-mundo e a rizicultura colonial. O todo e as partes em uma pesquisa sobre o arroz Por outro lado, um resultado distinto, mas ainda assim relacionado, foi o surgimento de uma produção memorialística dedicada a assuntos agrícolas. Como efeito daquele enquadramento mais amplo, as memórias buscaram rever a realidade colonial e racionalizar parte das atividades agrícolas existentes no Império português, em um momento de evidente crise econômica. As práticas de outros locais do mundo atlântico serviram como parâmetros discursivos para a reforma, algo expresso na tradução de memórias agrícolas, originalmente escritas em francês e inglês, pela conhecida Tipografia do Arco do Cego, empreendimento editorial coordenado por Frei Veloso e dom Rodrigo de Sousa Coutinho na metrópole lusa.12 Esse desenvolvimento também surgiu em meio aos tempos da colonização americana, mais um sinal da dinâmica relação com temporalidades distintas. As ideias e práticas pensadas para a América lusa levaram em conta a existência de seus similares em locais colonizados, por exemplo, pelos poderes do norte europeu. Ideias sobre a agricultura e a necessidade de reformas no mundo francês ou britânico serviram como modelos do que poderia ser melhorado e emulado no Império português. Exemplo da convivência em uma mesma época de realidades com cronologias distintas, fundadas em experiências coloniais díspares, evidenciando o que Koselleck determinou como a “contemporaneidade do não-contemporâneo”.13 Nesse caso, é preciso considerar o fato de a colonização europeia nas Américas não ter sido um processo unívoco e sem tensões entre os próprios poderes coloniais. Uma delas pôde aparecer na própria cronologia dos eventos. Se os ibéricos iniciaram seus empreendimentos no século XV, por meio da conquista e posterior colonização dos territórios do Novo Mundo, os poderes do norte europeu, principalmente a França, Inglaterra e os Países Baixos, aqui se estabeleceram mais tarde. Tal clivagem temporal persistiu no século XVIII, bém MARQUES, Leonardo; ROCHA, Gabriel de A. A história ambiental do capitalismo no mundo colonial, séc. XV ao XIX. Tempo, Niterói, v. 28, n. 1, p. 145-159, 2022. p. 152. Para o argumento das temporalidades, ver BRAUDEL, Fernand. História e Ciências Sociais: a Longa Duração. In: BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a História. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2014, p. 41-78. 12 Para um resumo das atividades reformistas, ver POMBO, Nívia. Dom Rodrigo de Sousa Coutinho: pensamento e ação político-administrativa no Império Português (1778-1812). São Paulo: Hucitec, 2015, p. 196-210; sobre as traduções, ver HARDEN, Alessandra R. de O. Os tradutores da Casa do Arco do Cego e a ciência iluminista: a conciliação pelas palavras. Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas, v. 50, n. 2, p. 301-320, 2011; sobre a crise, ver MENZ, Maximiliano M. Reflexões sobre duas crises econômicas no Império Português (1688 e 1770). Varia Historia, Belo Horizonte, v. 29, n. 49, p. 35-54, 2013; sobre os discursos e a reforma agrícola aqui citados e também nos próximos dois parágrafos, ver um resumo em PORTELLA, Alberto C. O arroz colonial no reformismo ilustrado português (1750-1808). 2023. 262 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2023, principalmente as p. 66-191. 13 Ver BERBEL, Márcia; MARQUESE, Rafael de B.; PARRON, Tâmis. Escravidão e política: Brasil e Cuba, c. 1790-1850. São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2010. p. 27-93; também KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006. p. 317.
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