77 Bruno da Fonseca Miranda em convívio. Nessa contradição é plausível argumentar que há um cenário de crise no qual um estrato de tempo tenha o potencial de suplantar o outro, gerando, desse modo, um entre diversos futuros possíveis.7 No presente oitocentista brasileiro pode-se distinguir claramente dois tempos: o da escravidão e o da liberdade. O tempo da escravidão oitocentista (oportunamente conceituado como Segunda Escravidão8) é repleto de estratos que permitem tanto a dissociação da escravidão do XIX em relação aos regimes escravistas coloniais da Era Moderna, quanto a sua ligação com a escravidão vigente ao longo da Antiguidade. No primeiro caso, a distinção fica marcada pela emergência e consolidação da Segunda Escravidão em espaços nacionais – ou com relativo espaço de autonomia política, como é o caso específico da ilha de Cuba – em contraposição aos espaços coloniais.9 No segundo, pela reiteração de uma relação de poder altamente assimétrica entre senhores e escravos que se estendeu da Antiguidade à Contemporaneidade.10 O tempo da liberdade, ao menos para o presente texto, foi uma criação setecentista, obra dos abolicionistas que passaram a definir a escravidão como uma forma de pecado, uma imoralidade que deveria ser erradicada da face da terra para a salvação da humanidade.11 No seu intento de debilitar a escravidão, habilitaram qualquer forma de trabalho, ainda que coercitiva, que se desse pela via contratual. Ao lutarem pela abolição da escravidão contribuíram para a criação de uma nova forma de trabalho na qual os homens passaram a ser formalmente livres (não-escravos), mas não deixaram de ser submetidos a extensas jornadas laborais, pautadas por uma rígida disciplina de trabalho. Em suma, a ação abolicionista forneceu a ideologia que permitiu a disseminação da exploração da força de trabalho humano com a justificativa de que os indivíduos livremente se submeteram ao trabalho.12 Por um lado, essa empreitada criou as condições para impor um fim à escravidão em diversas localidades do continente americano. Por outro lado, foi incapaz de barrar o incremento escravista em outras áreas do mesmo continente, um incremento que alcan7 Cf. KOSELLECK, Reinhart. Crisis. Journal of the History of Ideas, v. 67, n. 2, p. 357-400, abr. 2006. 8 Cf. TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp, 2012. 9 Cf. Idem. BLACKBURN, Robin. Por que segunda escravidão? In: MARQUESE, Rafael; SALLES, Ricardo (org.). Escravidão e capitalismo histórico no século XIX. Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. p. 19. 10 Cf. PATTERSON, Orlando. Escravidão e morte social. Um estudo comparativo. São Paulo: Edusp, 2008. p. 34. 11 Cf. DAVIS, David Brion. O problema da escravidão na cultura ocidental. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 43, p. 329-345 e p. 495. 12 Cf. DAVIS, David Brion. The Problem of Slavery in the Age of Revolution 1170-1823. New York; Oxford: Oxford University Press, 1999. p .213-254, p. 358, p. 377-378 e p.4 67. STEIFELD, Robert J. Coertion, contract, and free labor in the nineteenth century. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.
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