SISTEMAS, TEMPOS E ESPAÇOS O LAB-MUNDI EM DEZ ANOS DE FAZER HISTORIOGRÁFICO Rafael de Bivar Marquese João Paulo Pimenta Alexandre Moreli Rodrigo Goyena Soares (Organizadores) Casa Leiria
Rafael de Bivar Marquese é doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História Econômica da Universidade de São Paulo e professor do Departamento de História da mesma instituição João Paulo Pimenta é doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo e professor do Departamento de História da mesma instituição Alexandre Moreli é doutor pelo Institut Pierre Renouvin da Université Paris 1 - Panthéon Sorbonne e professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo Rodrigo Goyena Soares é doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo
Rafael de Bivar Marquese João Paulo Pimenta Alexandre Moreli Rodrigo Goyena Soares (Organizadores) Casa Leiria São Leopoldo/RS 2024 SISTEMAS, TEMPOS E ESPAÇOS O LAB-MUNDI EM DEZ ANOS DE FAZER HISTORIOGRÁFICO
SISTEMAS, TEMPOS E ESPAÇOS: O LAB-MUNDI EM DEZ ANOS DE FAZER HISTORIOGRÁFICO Organizadores: Rafael de Bivar Marquese, João Paulo Pimenta, Alexandre Moreli e Rodrigo Goyena Soares. DOI: https://doi.org/10.29327/5450727 Para citar esta obra (ABNT): MARQUESE, Rafael de Bivar et al. (org.). Sistemas, tempos e espaços: o Lab-Mundi em dez anos de fazer historiográfico. São Leopoldo: Casa Leiria, 2024. Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Catalogação na publicação Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973 Casa Leiria Ana Carolina Einsfeld Mattos Ana Patrícia Sá Martins Antônia Sueli da Silva Gomes Temóteo Glícia Marili Azevedo de Medeiros Tinoco Haide Maria Hupffer Isabel Cristina Arendt Isabel Cristina Michelan de Azevedo José Ivo Follmann Luciana Paulo Gomes Luiz Felipe Barboza Lacerda Márcia Cristina Furtado Ecoten Rosangela Fritsch Tiago Luís Gil Conselho Editorial (UFRGS) (UEMA) (UERN) (UFRN) (Feevale) (Unisinos) (UFS) (Unisinos) (Unisinos) (UNICAP) (Unisinos) (Unisinos) (UnB) S623 Sistemas, tempos e espaços: Lab-Mundi em dez anos de fazer historiográfico [recurso eletrônico] / organização Rafael de Bivar Marquese… [et. al.]. – São Leopoldo: Casa Leiria, 2024. Disponível em: <http://www.casaleiriaacervo.com.br/historia/labmundi10anos/index.html> ISBN 978-85-9509-142-9 1. Historiografia – Departamento de História – Universidade de São Paulo. 2. Historiografia – Lab-Mundi (USP). 3. Lab-Mundi – Memória e história. 4. Lab-Mundi – Estudo e ensino. I. Marquese, Rafael de Bivar (Org.). CDU 930:378.096
5 Sistemas, tempos e espaços: o Lab-Mundi em dez anos de fazer historiográfico Sumário 8 Introdução: sobre experiências, pesquisas e debates Alexandre Moreli Parte 1 – Entre memória e história do Lab-Mundi 13 Um balanço pessoal sobre a primeira década do Lab-Mundi/USP (2013-2023) Rafael de Bivar Marquese 27 Entre a História Comparada e a perspectiva do Sistema Mundo Marcelo Rosanova Ferraro 36 A morfologia histórica do escravismo Atlântico Leonardo Marques Waldomiro Lourenço da Silva Júnior Parte 2 – Sistemas, tempos e espaços 50 A Economia-mundo e a rizicultura colonial. O todo e as partes em uma pesquisa sobre o arroz Alberto Camargo Portella 60 A semântica histórica da experiência e as categorias de análise de Koselleck no estudo das dinâmicas de transição em grandes potências Alexandre Moreli 75 Estado imperial e classe senhorial entre dois tempos históricos Bruno da Fonseca Miranda 83 Esquemas, recursos e agência em Sewell Jr.: uma proposta teórico-metodológica para a pesquisa biográfica Camilla Cristina Guelli 95 Paoli e a Córsega na Era das Revoluções. Múltiplas perspectivas para a historiografia revolucionária Daniel Gomes de Carvalho 110 As acelerações técnica e de mudança social na sociedade soviética: o campo aeroespacial, suas possibilidades e o cenário doméstico da URSS entre as décadas de 1950 e 1960 Gianfranco Caterina 121 Karl Polanyi e a terra como mercadoria no Brasil (séculos XVI – XIX) Gustavo dos Santos Rey Saiz
6 Sistemas, tempos e espaços: o Lab-Mundi em dez anos de fazer historiográfico 132 Transformação de estruturas e a reordenação social na Revolução Haitiana Isabela Rodrigues de Souza 142 Comércio, informações e diplomacia: o grão-ducado da Toscana e o império português no Atlântico (1580-1640), breves apontamentos historiográficos e metodológicos Joao Gabriel Covolan Silva 156 Vivências e experiências: uma nota acerca dos tempos da história e suas hierarquias João Paulo Pimenta 163 As conexões entre Brasil e Portugal no contexto dos levantes e da contrarrevolução miguelistas: o caso do Batalhão dos Voluntários Acadêmicos de Coimbra (1826-1828) Kelly Eleutério Machado Oliveira 176 Experiências, expectativas e prognósticos na tentativa de inaugurar uma nova era para o sistema global do café: o multilateralismo nas Américas e a primeira Organização Internacional do Café (1953-1958) Leonardo F. Derenze 186 O Direito Natural e o Espectro Político Moderno: considerações sobre a temporalização e politização de uma linguagem Lucas Mohallem 199 A transformação da China: autofortalecimento, modernização e crise Marco Aurélio dos Santos 211 Disputa de temporalidades. Comentário às reflexões teóricas sobre o tempo no Lab-Mundi Nicolás Alejandro González Quintero 218 Representações visuais de consumo de bebidas estimulantes, 1630-1815 Nicole L. Bianchini 232 La experiencia de los imperios portugués, británico y francés en el Virreinato de la Nueva Granada y la Capitanía General de Venezuela, 1807-1810 Oscar Javier Castro 245 A Guerra de Sessenta Anos. A região-mundo platina e as causas do conflito de 1864 Rodrigo Goyena Soares
7 Sistemas, tempos e espaços: o Lab-Mundi em dez anos de fazer historiográfico 262 As imagens e os Tempos Sarah Tortora Boscov 273 Experimentos laboratoriais: tempo, espaço, estrutura e agência em um estudo sobre os correios do Brasil Thomáz Fortunato 284 A contribuição da leitura da obra “Ideias em Confronto. Embates pelo poder na Independência do Brasil (1808-1825)” para a diferenciação entre evento e processo histórico na Independência do Brasil Vinícius Carneiro de Albuquerque
8 Introdução: sobre experiências, pesquisas e debates Alexandre Moreli Para além do resultado do Seminário “10 anos de Lab-Mundi”, foi também por meio das noções de diálogo e de transmissão que este livro foi traçado. Como as leitoras e os leitores poderão observar, ele reúne trabalhos e reflexões apresentados no evento, mas igualmente se organiza a partir de princípios e dinâmicas de diversas atividades que estruturam o Laboratório de Estudos sobre o Brasil e o Sistema Mundial, o Lab-Mundi. Criado em abril de 2013 pelos professores Rafael Marquese e João Paulo Pimenta, do Departamento de História da USP, juntamente com diversos colegas, alunas e alunos, o Lab-Mundi tornou-se um espaço para ações das mais importantes e profícuas que uma universidade pública pode abrigar: a valorização do fazer historiográfico e das relações de aprendizado entre professores e alunos. Após mais de uma década de existência, o Laboratório então encontra, nesta obra, um importante balanço, ou ainda um de seus mais interessantes frutos. Trata-se da compilação de trabalhos apresentados no Seminário de celebração de seus dez anos, que ocorreu no Auditório Fernand Braudel, da FFLCH/USP, nos dias 18 e 19 de abril de 2024. O encontro teve a intenção de celebrar a congregação de pesquisadores, estudantes e professores da Universidade de São Paulo, bem como de instituições brasileiras e estrangeiras, interessados em pensar a história do Brasil não só no interior de suas fronteiras, mas para além delas. No Laboratório, são também valorizadas as perspectivas analíticas do sistema-mundo e da história das relações entre povos e sociedades em diferentes tempos e espaços. O Lab-Mundi tem se alimentado de trajetórias de investigação que tratam dos processos de independência e de construção do Estado nacional brasileiro em suas interfaces com o sistema mundial, da dinâmica do escravismo brasileiro nos quadros da economia-mundo capitalista, do papel do Brasil nos âmbitos regional e global da Guerra Fria e, finalmente, das relações transatlânticas e do terceiro-mundismo. Por meio da criação de núcleos de pesquisa com acento marcadamente comparativo e integrador, o Lab-Mundi sempre teve por escopo a ampliação do leque temático de abordagens que compreendam a formação DOI: https://doi.org/10.29327/5450727.1-1
9 Alexandre Moreli histórica do Brasil dentro das muitas possibilidades contidas naquilo que convencionou-se chamar de História Global, buscando para tanto ativa interlocução e colaboração de colegas de diversas áreas das Ciências Humanas dedicados ao tema. Internamente, o laboratório é atualmente constituído por sete Núcleos de Pesquisa, com uma dinâmica fortemente baseada na autonomia associativa e intelectual dos participantes. O primeiro, intitulado “Capital, Estado e Trabalho”, tem por objetivo estudar as causas sistêmicas de longo curso que bloquearam a expansão da escravidão nos Estados Unidos, em Cuba e no Brasil na segunda metade do século XIX. O segundo, denominado “História do Tempo: Teoria e Metodologia”, visa discutir noções, concepções, representações e conceitos do tempo histórico em distintas épocas e lugares. O terceiro, que leva o título de “Capitalismo e Sistema-Mundo: Teoria e Método”, tem o propósito de compreender o capitalismo enquanto sistema histórico, dentro do qual interagem os múltiplos estratos de tempo da modernidade. O quarto, denominado “Revoluções e Independências Americanas”, propõe-se a estudar as principais linhas interpretativas sobre as revoluções e independências americanas com vistas a construir uma visão integrada dos processos de crise dos sistemas atlânticos (ibérico e do noroeste europeu) e de formação dos novos Estados Nacionais. O quinto, intitulado “Historicismo e Sensibilidades Históricas”, busca discutir as origens do historicismo enquanto fenômeno histórico-social, atentando para as circunstâncias específicas que propiciaram seu advento, seu desenvolvimento e sua relação com temas centrais no estudo da História. O sexto, intitulado “Guerra Fria”, tem por objetivo compreender o lugar do Brasil dentro de um conflito de dimensões globais que tomou o século XX. Finalmente, o sétimo, intitulado “Iluminismo, Revoluções e História Intelectual”, inaugura-se no momento de produção deste livro, tornando-se testemunha do vigor do Laboratório no momento em que comemora mais de uma década de existência. O grupo intercala discussões teórico-metodológicas próprias do campo da História Intelectual com fontes, artigos, livros, teses e dissertações sobre os temas do Iluminismo e da Era das Revoluções. Externamente, o Lab-Mundi encontra-se vinculado, desde sua fundação, à Weatherhead Initiative on Global History, da Harvard University, tendo participado de diversas iniciativas ao lado de instituições parceiras como a Université Cheikh Anta Diop, do Senegal, o Institute for Social History, da Holanda, a East China Normal University, da China, e a Delhi University, da Índia. Seus membros, ademais, tomam parte de grupos como a Second Slavery Research Network (cuja face brasileira é o grupo interinstitucional O Império do Brasil e a Segunda Escravidão) e de projetos como o Iberconceptos, sediado na Universidade do País Basco, ou ainda o History Lab – History as Data Science, liderado pela Columbia University.
10 Introdução: sobre experiências, pesquisas e debates Para além de todas essas iniciativas, entre as principais atividades do Laboratório estão os Encontros Gerais, organizados mensalmente. Para tais reuniões, seus participantes impõem-se tanto o desafio de ler criticamente como de debater francamente obras clássicas da historiografia e de campos afins, como foram os casos de “O Mediterrâneo”, de Fernand Braudel, ou ainda de “Gramsci’s Historicism”, de Esteve Morera, de “Questão de Método”, de Jean-Paul Sartre, de “Pour l’histoire des relations internationales”, de Robert Frank, de “A Grande Transformação”, de Karl Polanyi, da “Aceleração”, de Hartmut Rosa e de “Production, Power and World Order”, de Robert Cox. As conclusões e resultados de tais diálogos seguem enriquecendo as grades de leitura de seus membros, tornando seus projetos de pesquisa mais complexos e desafiadores. Em meio a diversas iniciativas e com a perspectiva da efeméride de 10 anos da fundação do Laboratório, os professores Rafael Marquese, João Paulo Pimenta, Alexandre Moreli (parte do Conselho Deliberativo desde 2018) e Rodrigo Goyena (desde 2022) lançaram uma chamada de trabalhos para reunir membros e antigos membros do Lab-Mundi em um evento de debate em torno das experiências de participação ao longo de seus anos de existência. Mais do que um encontro em que se apresentam trabalhos, o Seminário foi pensado como uma oportunidade singular de valorização de propostas que pudessem evoluir ao longo da própria preparação para o evento. Nesse sentido, tendo como objetivo destacar e avultar os aprendizados resultantes das discussões fomentadas ao longo dos anos de atividades do Lab-Mundi, a chamada foi lançada em 2 de maio de 2023, buscando propostas centradas no fazer historiográfico e na metodologia de pesquisa, mas, particularmente, incentivando os participantes a buscar iluminar de uma nova forma seus objetos de estudo recorrendo às discussões de que tomaram parte enquanto membros do grupo. Tendo aceito as propostas de participação, o processo de preparação previu o envio de uma primeira versão de cada texto até o início de agosto de 2023, para que os professores organizadores pudessem produzir uma primeira leitura crítica e oferecer sugestões. As versões para apresentação no evento foram enviadas um mês antes da data prevista para o Seminário acontecer, inicialmente em finais de outubro de 2023. Por razões internas à Universidade de São Paulo, o evento acabou adiado para abril de 2024, mas contou com uma circulação prévia de todos os trabalhos entre os participantes, além do convite a colegas professores e pesquisadores para que pudessem comentar os textos em cada mesa de apresentação. Nesse sentido, fica o sincero agradecimento a Leonardo Marques, André Roberto de Arruda Machado, Nicolás Alejandro González Quintero, José Evando Vieira de Melo, Daniel Gomes de Carvalho e Silvana Andrade pela valiosa participação como debatedores e pelos comentários que ofereceram na ocasião do encontro.
11 Alexandre Moreli Os trabalhos, de fato, dialogaram com leituras e debates produzidos ao longo do tempo no Laboratório. Assim foram intituladas as mesas do Seminário: “Experiências, representações e tempos”, “O global e as relações”, “Tempos, rupturas e acelerações”, “Espaços, sistemas e conexões”, “Espaços, economia e poder” e “Balanço teórico-metodológico”. Nelas, os participantes mobilizaram textos de Fernand Braudel, Reinhart Koselleck, Serge Gruzinski, Hartmut Rosa, Emilia Viotti, Jean-Paul Sartre, Dale Tomich, Immanuel Wallerstein, William Sewell Jr. e Karl Polanyi, entre outros.1 O resultado foi uma singular produção de reflexões de pesquisadores que, já dominando seus objetos de estudo, ensaiaram explorá-los a partir de perspectivas antes não consideradas, avaliando o potencial de as utilizar e indicando novos caminhos para fazê-lo. Os textos finalmente publicados neste volume organizam-se em duas partes. Na primeira, encontram-se escritos que se movem entre a memória e a história do Lab-Mundi, servindo, para além de uma saborosa leitura sobre o ofício do historiador, de registro da trajetória do grupo, agora perene nestas páginas. Na segunda parte, reúnem-se os demais trabalhos apresentados no evento, moldados por uma particular iniciativa sobre o fazer historiográfico ao aceitarem o desafio de aplicar novas grades de leitura na análise de seus objetos. Todos, enfim, tendo passado por nova revisão após o Seminário, com suas autoras e autores incorporando sugestões recebidas durante os debates acontecidos nos 18 e 19 de abril de 2024 que, esperamos, possam interessar à leitora e ao leitor. Ao menos, que talvez possam inspirar experiências, pesquisas e debates semelhantes. Alexandre Moreli 4 de agosto de 2024 1 O programa pode ser consultado em https://labmundi.fflch.usp.br/eventos-academicos, acessado em 4 ago. 2024.
Parte 1 – Entre memória e história do Lab-Mundi
13 Um balanço pessoal sobre a primeira década do Lab-Mundi/USP (2013-2023) Rafael de Bivar Marquese Como um dos fundadores do Lab-Mundi, creio que tenho salvo-conduto para me lançar em um exercício de ego-história. O que pretendo fazer neste curto capítulo é, em primeiro lugar, esclarecer aos membros mais novos do laboratório quais foram suas origens e sua dinâmica inicial – tudo isso, evidentemente, contado a partir de uma leitura estritamente particular do que se passou. Ao mesmo tempo, e para obedecer aos propósitos deste volume, procurarei explicitar, em um segundo momento, como sua trajetória está nas origens da minha atual pesquisa, e como ela dialoga com o corpo de leituras coletivas que compartilhamos nos últimos anos. Meu aporte mais longínquo à fundação do Lab-Mundi decorreu de dois projetos coletivos desenvolvidos após meu ingresso na USP como docente, no começo de 2003. Ambos correram entre 2004 e 2010. O primeiro foi uma pesquisa sobre a paisagem e a arquitetura da escravidão no Vale do Paraíba, no ocidente de Cuba e no baixo vale do rio Mississippi, tocado em parceria com Dale Tomich, Reinaldo Funes e Carlos Venegas com financiamento da The Getty Foundation.1 Em outubro de 2010, após o término da pesquisa primária para o projeto, organizei com Tomich e Christopher Schmidt-Nowara um seminário no Fernand Braudel Center (FBC) da Universidade de Binghamton (centro fundado por Immanuel Wallerstein e Terence K. Hopkins em 1976) sobre a política nacional e internacional da Segunda Escravidão. Como um fruto direto desse seminário, criamos logo em seguida a Second Slavery Research Network, reunindo vários pesquisadores dos Estados Unidos, Brasil, Cuba, Espanha, Inglaterra e Alemanha para a promoção de encontros acadêmicos e atividades internacionais conjuntas. 1 O projeto gerou grande número de publicações na forma de artigos e capítulos em obras coletivas. Dez anos após seu término, publicamos um livro curto, escrito por nós quatro, que resumiu uma das vertentes de nossa investigação: TOMICH, Dale W. et al. Reconstructing the Landscapes of Slavery. A Visual History of the Plantation in the Nineteenth-Century World. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2021. DOI: https://doi.org/10.29327/5450727.1-2
14 Um balanço pessoal sobre a primeira década do Lab-Mundi/USP (2013-2023) Enquanto se dava a pesquisa comTomich, Funes e Venegas, eu tocava paralelamente, aqui na USP, o segundo projeto coletivo, dentro de uma iniciativa igualmente ampla. Tratou-se do Temático Fapesp A fundação do Estado e da nação brasileiros, c.1750-1850, coordenado por István Jancsó entre 2003 e 2008. O início dele coincidiu com minha entrada como docente na USP. A agenda que propus para o Temático consistia em pesquisar a ideologia e a política da escravidão no Império do Brasil entre 1808 e 1850, por meio da imprensa periódica e dos debates parlamentares. Para tornar curta uma história que é longa, dessas atividades no Temático é que nasceram as pesquisas de IC, Mestrado e Doutorado de Tâmis Parron e Alain El Youssef, e a tese de doutorado de Ynaê Lopes dos Santos, todas elas desenvolvidas sob minha orientação, bem como o projeto que toquei de início com Márcia Berbel, e que depois incorporou Parron como parceiro de livro.2 Dentro do Temático, pude estreitar os laços de trabalho com João Paulo Pimenta, amigo dos tempos de graduação que se tornou colega da disciplina História do Brasil Colonial no Departamento de História no segundo semestre de 2004. O projeto sobre a política da escravidão no Brasil e em Cuba, se bem que modulado pela perspectiva analítica contida no conceito de Segunda Escravidão e pelo trabalho prévio de Márcia Berbel no trato das experiências constitucionais ibéricas, teve também uma marca clara da tese de doutorado de Pimenta, defendida em janeiro de 2004.3 Afinal, o que procuramos fazer no livro sobre Brasil e Cuba foi um exercício muito próximo ao que João Paulo havia feito em seu trabalho, qual seja, examinar como eventos ocorridos no Império espanhol e no Império português condicionaram-se mutuamente dentro do processo mais amplo de quebra das estruturas do colonialismo europeu nas Américas. Um dos resultados parciais de minha pesquisa para o Temático Fapesp, uma verticalização nas leituras de Francisco de Arango y Parreño – o mais importante ideólogo da ordem escravista-colonial cubana na virada do século XVIII para o XIX – sobre a experiência brasileira, foi diretamente inspirado pela tese de meu amigo e colega.4 Em algum momento de 2008 ou 2009, cheguei a discutir esse texto com o grupo de estudos que João Paulo mantinha com seus orientandos. Dentro do Departamento de História, eu vinha de uma boa, porém curta 2 Para além das dissertações e teses de Parron, Youssef e Santos, o principal resultado dessa colaboração dentro do Temático foi o livro escrito por Márcia Berbel, Rafael Marquese e Tâmis Parron: BERBEL, Márcia; MARQUESE, Rafael; PARRON, Tâmis. Escravidão e Política. Brasil e Cuba, 1790-1850. São Paulo: Hucitec-Fapesp, 2010. 3 Para a versão em livro, ver PIMENTA, João Paulo G. A Independência do Brasil e a experiência hispano-americana (1808-1822). São Paulo: Hucitec, 2015. 4 MARQUESE, Rafael de Bivar. Comparando impérios: o lugar do Brasil no projeto escravista de Francisco de Arango y Parreño. In: GONZÁLEZ-RIPOLL, Maria Dolores; CUARTERO, Izáskún Álvarez (org.). Francisco Arango y la invención de la Cuba azucarera. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2009. p. 67-84.
15 Rafael de Bivar Marquese experiência de discussões coletivas entre docentes e discentes na Linha de Pesquisa Escravidão e História Atlântica, que concebi e ajudei a fundar no início de 2004. Quando, em razão de diferenças teóricas e pessoais insuperáveis, a Linha naufragou no meio do Atlântico (algo que se deu mais ou menos por volta do final de 2007), meus orientandos de então ficaram sem a referência de um grupo coletivo de discussões, haja vista que eu promovia apenas reuniões individualizadas com eles. Alguns tomaram a iniciativa de fundar seu próprio grupo de estudos, com colegas de pós-graduação alunos de outros orientadores. Confesso que isso chegou a me gerar certo sentimento de culpa por não encabeçar a montagem de um novo grupo coletivo de pesquisa. Mas, como havia clara organicidade no que eu estava fazendo individualmente com cada um de meus orientandos, a culpa rapidinho foi embora. Aqui na USP, as coisas continuaram nesse passo – eu orientando discentes em reuniões individualizadas, vez por outra trazendo professores convidados como Reinaldo Funes, Schmidt-Nowara e Edward E. Baptist para ministrar cursos curtos de pós-graduação, sempre conversando nos corredores e fora da universidade sobre história e historiografia com João Paulo – até julho de 2012, quando participei de um seminário fechado da Second Slavery Research Network na Universidade de Colônia, organizado por Michael Zeuske. Em férias familiares na Alemanha, Sven Beckert, professor em Harvard, havia sido avisado por Zeuske a respeito do seminário; interessado em saber mais sobre a perspectiva e o grupo da Segunda Escravidão, apareceu por lá, mesmo sem estar escalado na programação. Beckert o fez feito um foguete: acompanhou apenas a primeira sessão do primeiro dia (que não foi a minha), almoçou conosco (quando tivemos rápida conversa) e se mandou. Algumas semanas depois, mandou-me um e-mail, pedindo-me o texto que eu apresentara em sessão posterior, um longo artigo que escrevi por ocasião do centenário de nascimento de Eric Williams, no qual tratei tanto da recepção de sua obra na historiografia brasileira quanto de sua validade para a compreensão da economia escravista cafeeira brasileira e mundial no longo século XIX.5 Em poucos dias, ainda no mês de agosto de 2012, Beckert enviou-me nova mensagem, dizendo-me que meu texto se aproximava bastante do que ele estava fazendo em seu projeto em vias de conclusão, sobre a história global do algodão, soltando por fim uma pergunta desconcertante: há gente praticando História Global no Brasil? 5 Para a publicação no Brasil, ver MARQUESE, Rafael de Bivar. Capitalismo, Escravidão e a Economia Cafeeira do Brasil no longo século XIX. Saeculum, João Pessoa, v. 29, p. 289-321, 2013. Esse texto foi originalmente preparado para um seminário que ocorreu na Universidade de Oxford em outubro de 2011, servindo de base para o prefácio que escrevi para uma nova tradução de seu livro clássico (ver WILLIAMS, Eric. Capitalismo e Escravidão. Trad. de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2012 [1944].
16 Um balanço pessoal sobre a primeira década do Lab-Mundi/USP (2013-2023) Não tenho a mínima ideia, foi o que pensei responder. Até 2012, eu simplesmente não havia parado para prestar muita atenção na moda avassaladora da História Global. Tudo o que havia lido a respeito até então me parecia teórica e metodologicamente frágil, sobretudo frente à potência da perspectiva analítica do sistema-mundo, com a qual vinha trabalhando desde o doutorado e que informara diretamente tanto o projeto sobre paisagem e arquitetura como o da política da escravidão. Procurando ser educado, esclareci Beckert que dentre os pesquisadores da escravidão por aqui, certamente não, não havia gente praticando História Global. Porém, prossegui, o tipo de preocupação que expressei no texto que ele havia lido em realidade estava ligado a um momento do passado historiográfico brasileiro que havia se notabilizado exatamente pelas perspectivas de análise abrangente, de teor globalizante. E, nisto, terminei, não estava sozinho, pois colegas meus que trabalhavam com outros temas também nutriam uma visão positiva sobre os legados historiográficos brasileiros e latino-americanos – ao escrever isso, pensei nas conversas que sempre tive com João Paulo Pimenta a respeito do assunto, e que vinham se acentuando após o término do Temático Fapesp. Beckert tem algo de empreendedor schumpeteriano. Eis sua réplica: estou criando com pesquisadores da Holanda e da Índia uma rede de História Global “truly Global” e precisamos de parceiros na América Latina. Você e seus colegas com interesses próximos aí no Brasil não gostariam de se juntar a nós? Ao levar o teor dessa troca para João Paulo, nós dois imediatamente pensamos: por que não? Pode ser algo passageiro, simples expressão de uma moda historiográfica, mas de todo modo não custa nada ver como é esta cena. No entanto, a coisa não se desenrolou imediatamente. Ficamos cozinhando a ideia da criação de mais um laboratório no Departamento de História (houve um momento, na segunda metade da década de 2000, em que eles brotaram em nossa instituição como cogumelo depois da chuva) por todo o segundo semestre de 2012. Sua criação foi formalizada somente em abril de 2013, tendo nós dois como coordenadores. Tomada a decisão, como batizá-lo? Diante dessa geleia geral que é o campo da História Global, por que não inscrever no nome do laboratório uma referência comum à nossa formação como historiadores e que antecipou muito do que é a atual agenda desse campo? João Paulo vinha de uma linhagem historiográfica que tinha na obra de Fernando Novais uma de suas matrizes, e cujas afinidades eletivas com as múltiplas variantes da teoria da dependência e da perspectiva de sistema-mundo eram mais do que evidentes. Do meu lado, fui leitor assíduo de Immanuel Wallerstein no mestrado e no doutorado, algo que em realidade carregava da graduação – o curso de História Moderna I e II que fiz em 1991 com meu orientador na graduação, no mestrado e no doutorado, Antônio Penalves Rocha, muito se valia dele. Depois, o trabalho com Tomich solidificou
17 Rafael de Bivar Marquese ainda mais esta referência em minhas pesquisas: ele havia sido pesquisador vinculado ao FBC desde sua fundação em 1976, e em 2008 eu passara a fazer parte do Conselho Editorial da Review do FBC. A escolha do nome foi, assim, consensual: Laboratório de Estudos sobre o Brasil e o Sistema Mundial, ou simplesmente Lab-Mundi. Após uma rápida pesquisa na internet, gelamos: há um laboratório com nome praticamente igual na Bahia! Porém, como LabMundo não é Lab-Mundi, bateu na trave e entrou. Teria sido possível adotar outra referência teórica comum para a fundação do novo laboratório. Nos anos de meu doutorado (1997-2001), li com afinco – por meio da tradução de Keith Tribe, uma referência historiográfica crucial para meu mestrado – os ensaios de Reinhart Koselleck sobre o tempo histórico e o cruzamento da história social com a história dos conceitos.6 João Paulo demonstrara, em seu mestrado defendido em janeiro de 1999, familiaridade com o Koselleck de Crítica e Crise, mas não com o do Futuro Passado. Ao ler e comentar sua dissertação em maio de 2000, com vistas às revisões para publicação em livro,7 disse-lhe que o que ele estava fazendo afinava-se à perfeição ao Koselleck teórico da história. Nos anos seguintes, João Paulo mergulhou em um dos campos abertos pelo historiador alemão, ao se tornar um dos principais pesquisadores do enorme empreendimento intelectual que foi o IberConceptos. Mas, como nosso novo laboratório faria parte de uma rede de História Global e não de História dos Conceitos ou de Teoria da História, ficamos com o sistema-mundo. As atividades do Lab-Mundi começaram com a leitura compartilhada por professores, alunos de graduação, pós-graduação e pesquisadores de pós-doutorado dos quatro volumes do Moderno Sistema Mundial.8 Foi uma experiência intelectual riquíssima, que se prolongou por quase dois anos e que nos serviu para demarcar uma série de problemas teóricos, metodológicos e historiográficos que, em meio a naturais e salutares divergências, iriam guiar nosso trabalho coletivo nos passos seguintes. Logo no início dessas leituras, Sven Beckert convidou-me – quando voltamos a nos encontrar pessoalmente, agora nos Estados Unidos – para es6 TRIBE, Keith. Land, Labour, and Economic Discourse. London: Routledge, 1978; MARQUESE, Rafael de Bivar. Administração e escravidão. Ideias sobre a gestão da agricultura escravista brasileira. São Paulo: Hucitec, 1999. p. 102; R. Koselleck, Futures Past. On the Semantics of Historical Time. Translated by Keith Tribe. Cambridge, Ma: MIT Press, 1985. 7 Cf. PIMENTA, João Paulo G. Estado e Nação no fim dos Impérios Ibéricos no Prata (1808-1828). São Paulo: Hucitec, 2002. 8 WALLERSTEIN, Immanuel. The Modern World System I. Capitalist Agriculture and the Origins of the European World-Economy in the Sixteenth Century. New York: Academic Press, 1974. Idem. The Modern World-System II. Mercantilism and the Consolidation of the European World-Economy, 1600-1750. New York: Academic Press, 1980. Idem. The Modern World-System III. The Second Era of Great Expansion of the Capitalist World-Economy, 1730-1840s. New York: Academic Press, 1989; Idem. The Modern World-System IV. Centrist Liberalism Triumphant, 1789-1914. Berkeley: California University Press, 2011.
18 Um balanço pessoal sobre a primeira década do Lab-Mundi/USP (2013-2023) crever o capítulo relativo à América Latina e ao Caribe em uma obra coletiva sobre História Global que ele estava editando com Dominic Sachsenmaier. Beckert ainda não conhecia pessoalmente João Paulo. Propus escrever o texto em parceria com ele, como um meio para, de certo modo, definirmos uma carta básica de intenções historiográficas do Lab-Mundi. Apresentamos um primeiro rascunho em um seminário realizado com Beckert na USP em setembro de 2013, momento em que firmamos a parceria com seu grupo de Harvard. O texto foi finalizado no começo de 2014 e, no ano seguinte, publicado primeiramente em português. Esse artigo de balanço historiográfico tem um argumento central que é relativamente simples: o que é tomado como novidade historiográfica nas academias anglocêntricas do Norte Global não o é, se mirado pelo prisma da historiografia da América Latina e do Caribe. Afinal, nas obras dos autores marxistas locais, daqueles relacionados à Escola dos Annales e dos formuladores e dos críticos da teoria da dependência, sempre houve a preocupação em articular o que se passava localmente às forças mais amplas do capital e do colonialismo, de natureza necessariamente global. Para dizer de outra forma: a tomada de consciência de nossa condição periférica no curso da crise global dos anos 1930 nos levou desde cedo a olharmos para o mundo sem sermos paroquiais. Praticar a História Global na América Latina e no Caribe, portanto, exigiria necessariamente diálogo com as tradições historiográficas locais.9 Nos anos seguintes, o Lab-Mundi se sedimentou. Em março de 2016, promovemos uma grande conferência internacional no Departamento de História da USP, reunindo pela primeira vez todas as delegações das cinco instituições fundadoras da rede de História Global proposta por Beckert em 2013.10 Por meio de seminários pontuais ou conferências internacionais, iniciamos nossa interlocução com os professores Felipe Loureiro (do Instituto de Relações Internacionais da USP) e Alexandre Moreli (então na Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro). Em 2018, com o ingresso de Moreli no corpo docente do IRI/USP, demos o passo decisivo para nossa atual configuração, quando o Lab-Mundi se tornou interinstitucional, reunindo na coordenação professores do DH e do IRI – um time que, a partir de 2022, foi reforçado por Rodrigo Goyena Soares, que havia feito pós-doutorado conosco entre 2018 e 2021. E foi também neste período pós-2015 que articulei de forma mais consistente minha pesquisa atual, diretamente informada pelo argumento do 9 MARQUESE, Rafael de Bivar; PIMENTA, João Paulo G. Tradições de História Global na América Latina e no Caribe. História da Historiografia, v. 17, p. 30-49, 2015. Em inglês, o texto foi publicado três anos depois (MARQUESE, Rafael de Bivar; PIMENTA, João Paulo G. Latin America and the Caribbean: Traditions of Global History. In: BECKERT, Sven; SACHSENMAIER, Dominic (org.). Global History, Globally. Research and Practice around the World. London: Bloomsbury, 2018. p. 67-82). 10 Ver a programação em https://labmundi.fflch.usp.br/seminario-internacional-scales-global-history (acesso em 22 de fevereiro de 2024).
19 Rafael de Bivar Marquese balanço que havia escrito com João Paulo sobre as tradições de História Global na América Latina e no Caribe. É sobre ela que passo a tratar agora. Ao término do projeto coletivo sobre paisagem e arquitetura das zonas da Segunda Escravidão, resolvi aplicar seus problemas e métodos para o estudo verticalizado da cafeicultura escravista nas Américas. Meu objetivo seria examinar primeiramente, de forma comparada, os ambientes construídos das fazendas escravistas de café em Cuba e no Brasil, para, em um segundo momento da investigação, tratar de Saint-Domingue e Jamaica. Com este projeto, renovei minha Bolsa de Produtividade em Pesquisa nível 2 do CNPq por duas vezes, em 2010 e 2013. No entanto, com o início dos trabalhos do Lab-Mundi e a reclassificação da bolsa do CNPq para o nível 1-D (cujos recursos de taxa de bancada me permitiriam realizar mais facilmente pesquisa de arquivo fora do Brasil), tomei a decisão de ampliar minha análise para o conjunto de todas as regiões produtoras de café no mundo entre o século XVI e o início do século XX. O enfrentamento mais sistemático da historiografia corrente no campo da História Global também me conduziu a isso, notadamente o livro recém-lançado – que pude ler ainda nas provas – de Sven Beckert.11 Uma obra fascinante e sedutora, sem dúvida, mas com alguns problemas pontuais no que se refere à conceituação de capitalismo histórico, ao tratamento da história comparada e do universo do trabalho. Sem ter clara consciência disso, eu vinha acumulando leituras sobre a trajetória global do café desde minha graduação: em dezembro de 1991, o primeiro livro que Penalves me sugeriu ler para preparar meu projeto de IC sobre manuais escravistas foi o clássico de Stanley Stein sobre a escravidão na cafeicultura do Vale do Paraíba.12 Chegando ao presente, isto é, aos trabalhos mais recentes com pegada clara na moda da História Global, a incapacidade deles em dar conta da historicidade das formas compulsórias de trabalho mobilizadas para a produção do artigo era algo que também vinha me incomodando.13 Em fins da década de 1930, um historiador brasileiro para lá de old fashion, o primeiro professor da Cadeira de História da Civilização Brasileira na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, havia publicado uma obra gigantesca e caótica sobre a história do café no Brasil, porém inigualável em termos de amplitude espacial e temporal, haja vista que cobria não apenas nosso país, mas igualmente outros espaços produtores em um arco 11 BECKERT, Sven. Empire of Cotton. A Global History. New York: Knopf, 2014. 12 Para a edição mais recente, ver STEIN, S. J. Vassouras. Um município brasileiro do café, 1850-1900 (1957; trad. port.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. A versão que li na ocasião foi a tradução preparada por Caio Prado Jr., que trouxe outro título: Grandeza e Decadência do Café no Vale do Paraíba: com referência especial ao município de Vassouras. São Paulo: Brasiliense, 1961. 13 Penso particularmente no trabalho de Steven Topik, que há bastante tempo está escrevendo uma história global do café. Dentre suas várias publicações preparatórias, ver em especial o artigo TOPIK, Steven. How Brazil Expanded the World Coffee Economy. Österreichische Zeitschrift für Geschichtswissenschaften / Austrian Journal of Historical Studies, v. 30, n. 3, p. 11-41, 2019.
20 Um balanço pessoal sobre a primeira década do Lab-Mundi/USP (2013-2023) do Iêmen ao Oeste de São Paulo.14 Se Taunay jamais poderia me oferecer um caminho adequado sobre como escrever uma história global do café – ou qualquer outro tipo de história –, dois outros cientistas sociais brasileiros, sim. Em dois ensaios escritos respectivamente em 1969 e 1976, o grande economista Antônio Barros de Castro propôs um modelo simples e poderoso para compreender a dinâmica histórica da cafeicultura brasileira, porém perfeitamente extensível à economia mundial. A chave estaria em enquadrar o deslocamento espacial da atividade a partir de três tempos que sempre configuravam, em um dado momento, diferentes zonas cafeeiras como pioneiras, maduras ou decadentes, tempos esses desiguais em suas trajetórias histórico-geográficas específicas porém permanentemente articulados pelo tempo unificado da economia mundial.15 Por fim, Emília Viotti da Costa: tal como Fernando Novais, essa notável professora do Departamento de História da USP foi pioneira no esforço de cruzar os aportes da concepção braudeliana do tempo histórico com o marxismo para dar conta da trajetória do escravismo brasileiro e americano na longa duração, a cada passo nutrindo um diálogo muito próximo com a obra de Jean-Paul Sartre.16 Ao me lançar no projeto de escrever uma história global do café e do trabalho compulsório, tarefa que sistematizei a partir de 2015, minha pretensão foi justamente a de ampliar, para todos os espaços mundiais abordados por Taunay, a perspectiva original que impulsionara Emília Viotti, combinando-a com uma moldura analítica próxima à de Barros de Castro. Ou, noutras palavras, fazer exatamente o que estava no artigo de balanço que escrevi com João Paulo no começo do Lab-Mundi: ao escrever a História Global na América Latina e no Caribe, devemos sempre dialogar com quem veio antes para, assim, não ficarmos reféns das viradeiras novidadeiras que movem a academia no Norte Global, e que, no mais das vezes, simplesmente vendem em um frasco novo um perfume que é velho. Em nossas atividades do Lab-Mundi, contudo, em momento algum lemos esses três autores. Como, então, as leituras realizadas nesses dez anos se relacionam à minha atual investigação? O espaço que me sobra é curto. Quem tiver mais interesse em meu projeto poderá ler uma descrição detalhada em um longo paper publicado em 2023 sob os cuidados do Bonn Center for Dependency and Slavery Studies, no qual procurei resumir seus argumentos 14 TAUNAY, Afonso d’E. História do Café no Brasil. Rio de Janeiro: DNC, 1939-1942 v. 15 CASTRO, Antonio Barros de. 7 ensaios sobre a economia brasileira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1980. 2 v.; CASTRO, Antonio Barros de. “As maos e os pes do senhor de engenho”: dinamica do escravismo colonial. In: PINHEIRO, Paulo Sergio (org.). Trabalho escravo, economia e sociedade. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1984. 16 Ver COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Brasiliense, 1989; COSTA, Emília Viotti da. Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue. A rebelião dos escravos de Demerara em 1823. São Paulo: Companhia das Letras, 1998; COSTA, Emília Viotti da. A dialética invertida: 1960-1990. In: COSTA, Emília Viotti da. A Dialética Invertida e Outros Ensaios. São Paulo: Ed. Unesp, 2014. p. 9-28.
21 Rafael de Bivar Marquese centrais e seu quadro teórico e metodológico mais amplo.17 Para encerrar, vou listar muito rapidamente o que estou carregando de nossas leituras conjuntas. A listagem está longe de ser exaustiva: arrolo aqui apenas aquelas que se mostram absolutamente indispensáveis para minha investigação. Primeiro: o conceito da economia-mundo e a distinção metodológica entre unidade de análise e unidade de observação. O projeto se estrutura em torno do exame do que estou denominando como economias globais do café. Identifiquei, ao longo da pesquisa, três delas. Inspirada no conceito de economia-mundo tal como formulado por Braudel e Wallerstein e, também, no conceito de complexos histórico-geográficos de Magalhães Godinho,18 a expressão “economia cafeeira global” não equivale a um mercado cafeeiro que cubra necessariamente todo o planeta. Afinal, isso só aconteceu ao longo da segunda metade do século XX. De forma próxima à definição de economia- -mundo de Braudel e Wallerstein, com o conceito de economia cafeeira global pretendo apenas lançar luz sobre complexos histórico-geográficos de vasta amplitude espacial que envolveram uma clara divisão entre zonas de produção e zonas de consumo articuladas por certas formas de poder político-econômico que se reproduziram na longue durée. Da mesma forma, a unidade de análise da pesquisa é dada pelas economias-mundo com as quais trabalho (a tributária-mercantil otomana e a capitalista europeia), sendo as unidades de observação representadas pelos espaços específicos que constituíram cada economia global do café. Segundo: a teorização do tempo histórico oferecida por Fernand Braudel e Reinhart Koselleck. O projeto opera com números ordinais que servem de marcadores temporais e conceituais para os grandes blocos de tempo que estão sendo examinados. Assim, falo em uma primeira (c.15501730), uma segunda (c.1650-1815) e uma terceira economias globais do café (c.1790-1914), ou, então, em uma primeira e uma segunda escravidão. Esses marcadores não assinalam momentos que se sucedem linearmente, o segundo substituindo integralmente ao primeiro, o terceiro ao segundo e assim por diante. Em realidade, eles assinalam a existência de estruturas históricas – as 17 MARQUESE, Rafael de Bivar. Asymmetrical Dependencies in the Making of a Global Commodity: Coffee in the Longue Durée. Berlin: EB Verlag, 2023. Se tudo correr bem, a pesquisa aí sumariada resultará em um livro intitulado Grão Amargo: uma História Global do Café e da Escravidão, a ser publicado pelo Selo Crítica da Editora Planeta em 2027. 18 Quem primeiro propôs o conceito de economia-mundo foi Fernand Braudel (BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Felipe II. São Paulo: Martins Fontes, 1982. 2 v., v. 1, p. 417-418), a nova leitura conjunta que começamos no em março de 2024. Wallerstein, no primeiro dos livros citados na nota 8, publicado em 1974, conferiu maior sistematicidade ao conceito, que como tal foi reincorporado por Braudel poucos anos depois (BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo, séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 3 v., especialmente v. 3, O Tempo do Mundo, p. 12-74). Para o conceito de complexos histórico-geográficos, ver GODINHO, Vitorino Magalhães. Os Descobrimentos e a Economia Mundial. Lisboa: Editorial Presença, 1981-1982. 4 v., v. 4, p. 207-222.
22 Um balanço pessoal sobre a primeira década do Lab-Mundi/USP (2013-2023) economias globais do café / a escravidão – que se sobrepõem temporalmente. Em cada onda de expansão que marcou a passagem de uma economia global do café para outra, o novo “espaço-líder” estabeleceu as novas condições de operação dos espaços que lhe haviam precedido, ao mesmo tempo em que condicionava aqueles que lhe eram contemporâneos. Foi o que se passou com Saint-Domingue (espaço-líder da segunda economia global do café) em relação ao Iêmen (o espaço produtor que monopolizou a oferta na primeira economia global do café) e ao Suriname (espaço ancilar dentro da segunda economia global do café), ou com o Vale do Paraíba (espaço-líder da terceira economia global do café) em relação a Haiti, Jamaica e Cuba, no Caribe (espaços antigos da segunda economia), e a Java / Ceilão, no Oceano Índico (espaços ancilares da terceira economia global do café). Para dar conta dessas sobreposições espaço-temporais, não vejo melhor caminho do que a pletora de perspectivas e conceitos trazidos por Braudel e Koselleck (dialética das durações; estrutura/evento; estratos de tempo; simultaneidade do não-simultâneo), e que tanto nos ocuparam em nossas discussões coletivas ao longo de todos esses anos.19 Terceiro: o método progressivo-regressivo de Jean-Paul Sartre. Para destacar apenas seu emprego mais imediato, ele me está sendo decisivo para ajudar a estabelecer as devidas mediações entre, por um lado, os espaços muito específicos das unidades produtivas cafeeiras que formavam cada uma das economias globais do café e, por outro, os complexos histórico-geográficos muito mais vastos que essas economias representavam. Com isso, torna-se possível dar conta desde a dinâmica da luta de classes em localidades muito particulares até o ordenamento mais amplo das formas estatais e interestatais em que se inscreviam aqueles conflitos. O cerne do método de Sartre está justamente em pressupor um permanente “vaivém” entre o geral e o particular, entre o abstrato e o concreto, entre a estrutura e o evento, entre a longa e a curta duração, entre os fluxos gerais da história e a esfera da biografia, tomada como produtora e produto de seu tempo.20 Como pudemos notar pela leitura do dossiê da Past & Present, o método sartreano permite resolver com notável elegância os falsos debates sobre o problema da escala que polarizam a micro- -história e a História Global.21 19 BRAUDEL, Fernand. História e Ciências Sociais: a Longa Duração. In: BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a História. São Paulo: Perspectiva, 1978; KOSELLECK, Reinhart; Futuro Passado. Contribuiço a semantica dos tempos historicos. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-RJ, 2006; KOSELLECK, Reinhart. Estratos do Tempo. Estudos sobre a Historia. Rio de Janeiro: Contraponto. Ed. PUC-RJ, 2014. 20 SARTRE, Jean-Paul. Questao de Metodo. In: SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo e um humanismo / A imaginaço / Questao de Metodo. Trad. Bento Prado Jr. Sao Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 109-191. 21 Ver, em especial, os artigos contrastantes de Jan de Vries (VRIES, Jan de. Playing with Scales: The Global and the Micro, the Macro and the Nano. Past & Present, v. 242, supl. 14, p. 23-36, nov. 2019) e Giovanni Levi (LEVI, Giovanni. Frail Frontiers? Past & Present, v. 242, supl. 14, p. 37-49, nov. 2019).
23 Rafael de Bivar Marquese Quarto: a perspectiva do historicismo realista descrita e analisada por Esteve Morera.22 Esta leitura, na realidade, serviu-me antes de tudo para adquirir uma consciência mais clara do que significa escrever história, e em que medida a busca da saída da contraposição nomotético x ideográfico por meio da concepção de um historicismo realista pode nos ajudar na consecução do projeto de uma História Global no sentido que Braudel lhe dava, isto é, como História Total. Não uma totalidade por adição, mas por relação; não totalidades fechadas, mas totalidades abertas.23 A totalidade por adição foi a que informou grande parte da produção historiográfica associada à segunda geração dos Annales, mas não a praticada por Braudel, muito mais afinado à sua busca de totalidades por meio de suas relações substantivas, isto é, pela investigação de fragmentos do globo integrados por meio de laços diversos (econômicos, sociais, políticos, culturais) que assumiram uma dada configuração dinâmica e sistêmica. A prática da escrita da história de Fernand Braudel – tomada por Morera como um dos mais bem acabados exemplos de historicismo realista – procurou dar conta dessas totalidades por relação (ou totalidades abertas) por meio de sua teoria dos tempos históricos plurais, a mesma que o levou a conceituar a economia-mundo capitalista, e que serviu de inspiração direta para a perspectiva do sistema-mundo. Como se pode perceber, o que carrego do Lab-Mundi comigo não é pouco. Tudo o que fiz nos últimos dez anos é absolutamente indissociável de nosso trabalho conjunto dentro dele. Por tudo isso, do meu ponto de vista vale a pena insistir para que ele tenha mais uns dez aninhos de vida. E depois mais dez. E, então, se o Brasil, o Sistema Mundial e a USP continuarem a existir, chegará o momento de me aposentar. Referências BECKERT, Sven. Empire of Cotton. A Global History. New York: Knopf, 2014. BERBEL, Márcia; MARQUESE, Rafael; PARRON, Tâmis. Escravidão e Política. Brasil e Cuba, 1790-1850. São Paulo: Hucitec-Fapesp, 2010. BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Felipe II. São Paulo: Martins Fontes, 1982. 2 v. BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo, séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 3 v. 22 MORERA, Esteve. Gramsci’s Historicism: a realist interpretation. London: Routledge, 1990. 23 Aqui me reporto a duas outras referências que ainda não tivemos oportunidade de discutir coletivamente no Lab-Mundi: KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1969 (para a contraposição adição x relação); LEFEBVRE, Hena notion de totalité dans les Sciences Socialeahiers Internationaux de Sociologie, v. 18, p. 55-77, jan./jul. 1955 (contraposição fechada x aberta).
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