73 Cadernos do PAAS, volume 11 - A mudança como fenômeno no cuidado em saúde gurança e a expressão “inundação”, que costumávamos usar para nos referirmos ao sentir que nos toma conta, ganhou consistência literal. A enchente alastrou nossas barragens e a trilha sonora passou a ser apenas uma: “Fazer versos, cantando as belezas desta natureza sem par e mostrar para quem quiser ver um lugar pra viver sem chorar” (Teixeira, 1978), dessa vez orquestrada por barulhos de helicópteros e sirenes, por gritos de socorro e por pedidos de resgate. O Rio Grande do Sul viveu um cenário avassalador: as enchentes de maio de 2024. Levando em consideração os dados de 10 de junho de 2024, de acordo com a Defesa Civil do Estado, 478 municípios foram afetados, 2.398.255 pessoas atingidas, 806 feridos, 38 desaparecidos e 173 óbitos. Esses números têm nome e sobrenome e são eles que dão a cara à tragédia. Números passam, pessoas não. Os dados falam e nos dão pistas daquilo que também não pode ser mensurado (Defesa Civil do Rio Grande do Sul, 2024). Após nosso percurso na graduação em Psicologia ter sido atravessado por uma pandemia, jamais imaginávamos que novamente nos veríamos frente a uma realidade desoladora, transbordadas pela sensação de vulnerabilidade e incapacidade. Em 2020 ouvimos “fiquem em casa” e em maio de 2024 ouvimos “saiam de casa”. Enquanto na pandemia da covid-19 o perigo estava no contato com o outro, em maio de 2024 o contato com o outro salvou. Esse salvamento veio por barco, helicóptero; pela distribuição de donativos, de roupas secas e de itens de higiene; pela produção de marmitas e pelos mutirões de limpeza; veio por meio de escutas e de acolhimento. O resgate veio por meio de muitas ações, formando uma rede de solidariedade em prol do maior exercício da humanidade. Foi tentando encontrar um terreno seguro uns nos outros, que nós, quatro alunas do curso de Psicologia da Unisinos, nos encontramos no voluntariado, em mobilizações possíveis na linha de frente, sendo testemunhas de um pavilhão virar casa de centenas de pessoas. Maio foi um mês que tropeçamos na impotência, remamos com a angústia, mas também nos agarramos na ação, nos emprestando coragem, dividindo força, buscando dar dignidade ao que sobrou, tentando construir sentido ao que não ficou. Foi um mês de ambivalências constantes frente ao que mexe e, ao mesmo tempo, paralisa. Da vontade de fazer muito com a sensação de que ainda é pouco. De um misto de luto com luta.
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