A mudanca como fenomeno no cuidado em saude

77 Cadernos do PAAS, volume 11 - A mudança como fenômeno no cuidado em saúde gadas. Foi neste momento que, entre inúmeras iniciativas e mobilizações de ações, nos encontramos com o percursar dos óculos. Esse caminho teve início com a nossa mobilização enquanto voluntárias da saúde mental, enxergando a realidade de muitas pessoas que estavam sem conseguir ver, pois seus óculos também foram levados pelas águas. Além do desafio custoso de enxergarem psiquicamente e simbolicamente suas condições, não conseguirem enxergar concretamente nos mobilizou. Uma realidade difícil de ser admitida, em que ouvimos o desespero frente ao desejo de muitos em “piscar e ver que não era verdade”. Diante disso, nos mobilizamos mais uma vez para ver o que era possível de ser feito para “limpar as lentes” desses olhos que enxergavam tal qual a água turva da enchente. Fizemos um levantamento, fomos atrás de receitas médicas e organizamos para levar esses sujeitos na ótica, realizarem suas medidas e, por fim, entregarmos a eles os óculos que lhes permitissem minimamente ver com dignidade. Por meio dessa ação, passamos a ver os movimentos de afeto acontecendo na nossa frente, presenciando uma senhora pegar a bíblia e nos mostrar que “agora” conseguia novamente ler, algo que fazia diariamente; assim como outro senhor pegar seu documento de identificação e soletrar seus números, querendo nos provar emocionado que “agora” conseguia ver a sua identidade. Conseguir enxergar novamente sua identificação, no meio de todo caos, foi como garantir àquele homem uma mínima segurança de quem ele é, tendo tudo que era parte de si e da sua história levado pela água. A entrega dos óculos às pessoas abrigadas foi como lhes devolver um pouco da sua existência. Ao resgatarmos a visão submersa de muitas pessoas, também passamos a emergir e ver mais nitidamente, sob outros ângulos, como pequenos gestos carregam o potencial de mudar significativamente perspectivas. Fomos nos questionando a partir de que lentes enxergávamos e nos dando conta da importância da sutileza do nosso trabalho, da proporção gigantesca que pequenas ações carregam. Afinal, cuidar da saúde mental em momentos de desastre é possibilitar ambientes seguros, escutar, buscar a promoção dos direitos e, também, cuidar de si (OMS, 2015). Com o percursar dos óculos, conseguimos ver os sujeitos ali presentes, ver as dores, o sofrimento, ver os afetos e as possibilidades da vida, enxergar a vida, em sua mais íntima condição. Com certeza, entregar novas lentes nos permitiu ganhar novos olhos, também.

RkJQdWJsaXNoZXIy MjEzNzYz