86 Cadernos do PAAS, volume 11 - A mudança como fenômeno no cuidado em saúde testemunho expõe as intensidades do impacto das calamidades, que não apenas devastam fisicamente, mas também destroem as referências pessoais e a segurança emocional das pessoas. As mulheres relataram como a inundação não apenas desfez suas casas e pertences, mas também abalou suas histórias de vida e a sensação de privacidade, expondo-as a uma vulnerabilidade constante. Outra integrante diz do seu desgosto em precisar implorar pelas coisas mais básicas no abrigo, como um copo d´água, ou uma peça de roupa. Ela, como uma mulher negra, que já viveu muitas violências, já sentiu ‘na pele’ os efeitos do racismo estrutural. E, agora, podemos nos questionar como se vivencia essas questões, ali, no abrigo? Carla Akotirene (2020) destaca que a interseccionalidade expressa a inseparabilidade estrutural entre o racismo, o capitalismo e o cisheteropatriarcado, produtores de avenidas identitárias em que mulheres negras são repetidas vezes atingidas pelo cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classe. Além disso, as violências também se manifestaram de diversas formas no abrigo. As desigualdades de gênero foram evidentes em situações como a dificuldade de muitas mulheres em participar do grupo, devido à falta de apoio dos companheiros para cuidar das crianças. Uma das integrantes relatou que, após 20 anos de relacionamento, decidiu se separar do parceiro enquanto estavam no abrigo, devido ao excesso de sobrecarga e à completa falta de apoio por parte dele. Assim, salientamos como, nesse caso, violências anteriormente normalizadas emergiram no contexto coletivo e passaram a ser problematizadas? O racismo também foi um tema abordado, sobretudo no discurso de mulheres negras do grupo, que compartilharam histórias relacionadas à discriminação vivida em diferentes momentos de suas vidas. Uma das integrantes refere que ‘tinha muitas histórias para contar no grupo’, quando falávamos sobre o racismo. Akotirene (2020) argumenta que a interseccionalidade também diz respeito a uma sensibilidade analítica, que nos ajuda a perceber a existência de uma matriz colonial moderna, ao mesmo tempo que possibilita a decolonialidade de perspectivas e olhares. Além disso, na roda com as mulheres, construímos uma história coletiva, a história de Karovak. O nome foi inventado pelo grupo, que brincou com as iniciais das integrantes. Assim, uma narrativa coletiva expressava um pouco de cada uma delas. Em alguns momentos,
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