87 Cadernos do PAAS, volume 11 - A mudança como fenômeno no cuidado em saúde a história de Ka (ela já tinha um apelido) se repetia, ganhava novos contornos e continuações. Muitas vivências foram contadas, através da personagem, pois foi possível coletivizar o cotidiano do abrigo: o excesso de filas, a sensação de vazio, a perda da privacidade, o medo de ser furtada, a desconfiança, a falta de higiene, as brigas e os conflitos diários. A história de Ka também possibilitou uma ampliação nos modos de dizer e nos modos de olhar para a experiência no abrigamento. Regina Benevides (1997) já nos questiona se um grupo pode ser um dispositivo, perguntando o que o dispositivo pode acionar, pois ele se constitui enquanto um emaranhado de várias linhas, como a visibilidade e a enunciação, a força e a subjetivação. Desse modo, na história de Ka, tais linhas podem ser agenciadas, promovendo fissuras nos modos solitários de viver a calamidade, envolvendo o grupo em um compartilhamento intensivo dos afetos e pensamentos. Dessa forma, a Roda de Mulheres no abrigo foi crucial para o compartilhamento de experiências e para a experimentação de novas formas de organização comunitária. As participantes expressaram o sofrimento advindo do impacto das calamidades em suas vidas e, através da autogestão e da narrativa coletiva de Karovak, encontraram novas formas de resistência e de solidariedade. Essa experiência destaca a importância de espaços coletivos na gestão de crises e sugere que, mesmo em situações de vulnerabilidade extrema, a colaboração e o empoderamento coletivo são essenciais para a superação e para a transformação das adversidades. A roda-viva: novas territorialidades e recomeços Após três semanas de encontros diários, o Abrigo da Unisinos foi desativado, e muitas mulheres haviam deixado o local. Algumas retornaram para casa ou se mudaram para a residência de familiares, enquanto outras foram realocadas em um novo abrigo disponibilizado pela prefeitura. Esse novo cenário trouxe desafios significativos para a nossa roda. Acompanhamos de perto as dores e frustrações das mulheres que enfrentaram a transição, compartilhando com elas a sensação de desamparo renovado, a perda de um segundo lar e o vazio e cansaço que se seguiram. Os relatos indicavam que a mudança apenas intensificou o sofrimento e a sensação de perda.
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