CASA LEIRIA SÉRIE CADERNOS DO PAAS | VOLUME 11 BRUNA OLIVEIRA SCHEFFEL, EDUARDA MELO NARDI, FRANCIELI DE AZEVEDO SOUZA, KATIANI BRUNA KLEIN, ISADORA GUIDOLIN D'ARRIAGA, LAURA CUNHA DA SILVA, LETÍCIA FERRAZ NEIS, LORRANI STAUDT SILVEIRA, NELSON EDUARDO ESTAMADO RIVERO, STEFANIE MONTEIRO BARCELOS LINDEN, VITOR HUGO BAUM - ORGANIZADORES A MUDANÇA COMO FENÔMENO NO CUIDADO EM SAÚDE
Estamos conscientes do desafio de falar sobre um cotidiano de constante movimento. Como escolher o que é mais importante? Sabemos sobre a grandeza que reside em um gesto de cuidado, na força de um encontro, na delicadeza da empatia, na gentileza de um acolhimento, ou seja, a importância das coisas na vida não pode ser medidas somente pela sua extensão material, custos financeiros, tempo empregado ou mesmo consequências vultuosas. Sabemos também que é desta multiplicidade de importâncias que se compõe nossa experiência de vida como sujeitos singulares e sociais. Mas como fazer quando estas importâncias são vividas em intensidade? Como organizar uma narrativa quando estas linhas múltiplas do que importa assumem uma força e uma urgência que não tínhamos até então experimentado? Pois então, esta é a questão que se apresenta no início desta escrita: qual o início de uma rede de acontecimentos entre os anos de 2023 e 2024 que colocou os serviços de saúde em vertigem, incluindo o PAAS com seus objetivos de formação e cuidado em saúde tensionados e demandados a reinventar-se?
Série Cadernos do PAAS | Volume 11 A MUDANÇA COMO FENÔMENO NO CUIDADO EM SAÚDE
UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS UNISINOS Reitor Prof. Dr. Pe. Sergio Eduardo Mariucci, S. J. Vice-reitor Prof. Dr. Artur Eugênio Jacobus CASA LEIRIA Rua do Parque, 470 93020-270 São Leopoldo-RS Brasil casaleiria@casaleiria.com.br
Série Cadernos do PAAS | Volume 11 casa leiria São leopoldo/rs 2024 ORGANIZADORES Nelson EDUARDO Estamado Rivero Bruna Oliveira Scheffel Eduarda Melo Nardi Franciele De Azevedo Souza Katiani Bruna Klein Vitor Hugo Baum Isadora Guidolin D’arriaga Laura Cunha Da Silva Letícia Ferraz Neis Lorrani Staudt Silveira Stefanie Monteiro Barcelos Linden A MUDANÇA COMO FENÔMENO NO CUIDADO EM SAÚDE
A MUDANÇA COMO FENÔMENO NO CUIDADO EM SAÚDE Editoração: Casa Leiria Capa: Letícia Ferraz Neis Fotografia da capa: Isadora Guidolin D’Arriaga Revisão: Comissão Cadernos do PAAS Para citar esta obra (ABNT): RIVERO, N. E. E. et al. A mudança como fenômeno no cuidado em saúde. São Leopoldo: Casa Leiria, 2024. (Série Cadernos do PAAS, 11). DOI: https://doi.org/10.29327/5457497 Os textos e as imagens são de responsabilidade de seus autores. Ficha catalográfica Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973 M943 A mudança como fenômeno no cuidado em saúde [recurso eletrônico] / Organização Nelson Eduardo Estamado Rivero...[et. al.] ; Projeto de Atenção Ampliada à Saúde (PAAS), Universidade do Vale do Rio dos Sinos. – São Leopoldo, Casa Leiria, 2024. (Cadernos do PAAS, v.11.). Disponível em: <http://www.casaleiriaacervo.com.br/servico social/cadernosdopaas/vol11/index.html> ISBN 978-85-9509-147-4 1. Saúde – Estudo e ensino. 2. Projetos de ação social – Saúde. 3. Serviço escola interdisciplinar. 4. Saúde – Formação profissional – Projeto interdisciplinar. 5. Serviço escola – Processos de aprendizagem e cuidado. 6. Projeto de Atenção Ampliada à Saúde – Relatos de experiências. I. Rivero, Nelson Eduardo Estamado (Org.). II. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. III. Projeto de Atenção Ampliada à Saúde (PAAS). IV. Série. CDU 214.2
Cadernos do PAAS, volume 11 - A mudança como fenômeno no cuidado em saúde SUMÁRIO Apresentação: Entre importâncias e desimportâncias: mudança e impermanência em um serviço escola Nelson E. E. Rivero, Letícia F. Neis e Lorrani S. Silveira ............................. 9 Vento Luciane Slomka ........................................................................................... 15 O serviço-escola e o estágio em Psicologia: processos de mudança inerentes ao funcionamento e à formação profissional Bruna Scheffel, Dâmaris Sant Anna, Eduarda Nardi, Francieli de Azevedo Souza, Isadora Guindolin D’arriaga, Lorrani Staudt Silveira, Priscila Razera Kuhn e Tagma Marina Schneider Donelli .................................................................. 17 Entre o saber e o fazer: da teoria à prática, a mudança como via de acesso Dâmaris Sant’Anna ..................................................................................... 31 Registros e retratos: a história da mudança Bruna Oliveira Scheffel, Mariéli Drachler e Michele Scheffel Schneider ............ 51 Mu(n)do Rafaela Mathias Schardong ........................................................................... 61 Sobem as águas, emerge a poesia: versos inspirado(re)s de olhares e vivências Alice Marques Cusin, Karin Cristine Lautenschleger e Michele Scheffel Schneider .............................................................................. 63 Aquilo que a água não pode levar: relato de experiência vivida em e no coletivo durante as enchentes do Rio Grande do Sul Priscila Razera Kuhn, Duane Cardoso, Nathalia Schmit, Sthefany Gomes e Michele Scheffel Schneider .................................................. 71 Mulheres na roda construindo espaços comuns por entres as águas de maio Vilene Moehlecke e Juliana Silveira de Oliveira ............................................. 81 O voluntariado nas enchentes do Rio Grande do Sul (RS) sob a ótica de uma psicóloga voluntária Raquel Aires do Amaral .............................................................................. 91
Corpo-metamorfo: território transicional da experiência “de passagem” Diennifer Couto Bittencourt ......................................................................... 103 Adotando novos caminhos – um caso de acolhimento institucional em psicoterapia psicanalítica Vanessa Camargo Gomes ........................................................................... 111 Além da tecnologia: impactos da Inteligência Artificial nas transformações da sociedade Taylor Felipe Alves Maia ............................................................................ 119 Residência em Saúde Unisinos: formar profissionais para o Sistema Único de Saúde Vania Celina Dezoti Micheletti, Karla Poersch, Lovaine Rodrigues, Flávia Porto, Scheila Mai, Rafael Wolski de Oliveira e Rosângela da Silva Almeida ........................................................................ 123 Uma vida em movimento: entrevista com Rosana Cecchini de Castro Letícia Ferraz Neis ..................................................................................... 137
9 RIVERO, N. E. E. et al. A mudança como fenômeno no cuidado em saúde. São Leopoldo: Casa Leiria, 2024. (Série Cadernos do PAAS, 11) Apresentação: Entre importâncias e desimportâncias: mudança e impermanência em um serviço escola Nelson E. E. Rivero1 Letícia F. Neis2 Lorrani S. Silveira3 O Eterno Deus Mu Dança (Gilberto Gil) (...) Sente-se - e não é somente aqui, mas em qualquer lugar: Terras, povos diferentes - outros sonhos pra sonhar Mesmo e até principalmente onde menos queixas há Mesmo lá, no inconsciente, alguma coisa está Clamando por mu-dança O tempo da mu-dança O sinal da mu-dança O ponto da mu-dança Sente-se, o que chamou-se Ocidente tende a arrebentar Todas as correntes do presente para enveredar Já pelas veredas do futuro ciclo do ar Sente-se! Levante-se! Prepare-se para celebrar O Deus Mu-dança! O eterno Deus Mu-dança! Talvez em paz Mu-dança! Talvez com sua lança 1 Psicólogo, professor e supervisor no Curso de Psicologia, supervisor e coordenador do Programa de Atenção Ampliada à Saúde (PAAS) Unisinos. 2 Psicóloga, técnica no Programa de Atenção Ampliada à Saúde (PAAS) Unisinos. 3 Acadêmica do Curso de Psicologia, estagiária no Programa de Atenção Ampliada à Saúde (PAAS) Unisinos. DOI: https://doi.org/10.29327/5457497.1-1
10 Cadernos do PAAS, volume 11 - A mudança como fenômeno no cuidado em saúde Por onde começar este texto de apresentação do Cadernos do PAAS volume 11? Em que medida podemos definir critérios de importância para sustentar que determinado fato foi mais decisivo que outro neste tempo entre o volume 10 e o presente para ser merecedor do lugar inaugural de uma narrativa sobre o serviço escola e suas vicissitudes, suas cotidianidades desde o final de 2023? Já estamos conscientes deste desafio quando pensamos sobre a grandeza que reside em um gesto de cuidado, na força de um encontro, na delicadeza da empatia, na gentileza de um acolhimento, ou seja, a importância das coisas na vida não pode ser medidas somente pela sua extensão material, custos financeiros, tempo empregado ou mesmo consequências vultuosas. Sabemos também que é desta multiplicidade de importâncias que se compõe nossa experiência de vida como sujeitos singulares e sociais. Mas como fazer quando estas importâncias são vividas em intensidade? Como organizar uma narrativa quando estas linhas múltiplas do que importa assumem uma força e uma urgência que não tínhamos até então experimentado? Pois então, esta é a questão que se apresenta no início desta escrita: qual o início de uma rede de acontecimentos que misturou a mudança de sede do serviço escola depois de 27 anos no mesmo local, a permanência provisória (paradoxo) em um novo lugar de passagem adaptado até que nossa sede definitiva estivesse pronta, a saída de uma coordenadora absolutamente identificada com o PAAS, sua história e seus princípios, e, como se não bastasse este movimento todo, sofremos com a tragédia das águas de maio no Rio Grande do Sul, onde a enchente afetou imensamente a população de São Leopoldo e de todo o Estado. Como já mencionado diversas vezes nos textos destes Cadernos, o PAAS é um serviço acostumado – mais do que isso – forjado pela mudança. Entradas e saídas de estagiárias e estagiários, usuários, parceiros, projetos e ações que vão se transformando, renovando-se, ou mesmo findando e abrindo espaço para novas formas de acontecer. Trabalhamos comprometidos com a mudança através do cuidado em saúde, nas pessoas que nos buscam, em nós mesmos e no próprio serviço. Não obstante, sabemos que as mudanças são movimentos que trazem a angústia frente ao desconhecido, a vibração e força no enfrentamento das dificuldades e provocam a coragem de assumir o novo como uma oportunidade de inventar-se outro.
11 Cadernos do PAAS, volume 11 - A mudança como fenômeno no cuidado em saúde Vamos então apresentar este volume do Cadernos do PAAS e a escolha do seu tema como uma inevitabilidade. Por mais que as transformações sejam parte de nós, a intensidade destes últimos tempos e seus acontecimentos não permitiu que fosse outra a escolha temática: a mudança como fenômeno na saúde. Dito isto, não faz mais sentido buscar o mais importante, portanto, vamos navegar entre os acontecimentos de 2024 no PAAS. Iniciamos o ano com um desafio que há muitos anos estava sendo gestado pela Universidade: transferir o PAAS (assim como todos os programas e projetos da Ação Social) para o campus central em São Leopoldo. Imediatamente lembramos do trabalho de organização de móveis, materiais, documentos, entre outras coisas para a mudança. Organização de caixas, a inevitável revisão do que não pode ser transferido ou não vale a pena ser movido. Aos poucos iniciamos o desmonte do espaço. Com brevidade percebemos que não se tratava somente de materialidades a serem administradas, mas o desmonte também se relacionava com o PAAS enquanto história, enquanto território existencial de muitos anos dedicados aos encontros e cuidados. Não conseguiríamos levar os corredores em movimento, as salas aquecidas pelos corpos, os grupos transbordando para o pátio, os risos e cheiros das refeições conjuntas no refeitório... as paredes se apresentaram para além dos rebocos, como testemunhas de vidas de alunos, professores, profissionais, usuários; narradas e experimentadas, em tristezas e alegrias. A beleza do prédio tombado pelo patrimônio histórico, que abrigou tantas e diferentes formas de viver desde séculos passados, também tinha o que contar de nós. Não carregávamos somente sua bela arquitetura nos olhos, mas também tínhamos impresso os abraços que a “antiga sede da Unisinos” promovia em nossos corpos. Ou seja, não foi somente uma troca de endereço, uma mudança de sede, mas uma exigência de abandono, elaboração e ressignificação do serviço. Assim, o início do ano misturou o vazio das presenças promovido pelas férias com a necessidade de promover a mudança de sede, como um movimento transição de cena, um fechar de cortinas para, quando as abrir novamente, um outro cenário já estivesse constituído. Assim foi feito. Saímos em férias e não voltamos mais ao mesmo lugar. O início das atividades do semestre precisou ser adiado para que pudéssemos organizar de modo satisfatório o espaço que nos foi destinado para fazer viver um PAAS provisório. Talvez esta tenha sido
12 Cadernos do PAAS, volume 11 - A mudança como fenômeno no cuidado em saúde uma das questões mais presentes durante o primeiro semestre de 2024: a provisoriedade. Sabemos da inconstância e da impermanência como uma condição da vida, mas habitar a provisoriedade nos faz sentir os dias como em suspensão. Mesmo assim, não tínhamos como permanecer em compasso de espera, a vida não para e o serviço precisava retomar seus atendimentos, acolher novos estagiários(as) e usuários(as), retomar as supervisões, os grupos, as reuniões, abrir-se aos movimentos de um semestre que não percebeu que estávamos em um outro lugar. Foi um período intenso de ressignificações e até mesmo de vários questionamentos acerca dos desafios que estavam postos. Como planejar um serviço frente as instabilidades que um período provisório impõe? Muitas reuniões foram feitas entre a equipe para que pudéssemos gerir da melhor forma o certo vazio que essa transição poderia causar. Com o passar do tempo, nos aproximamos do fato de que não existe a possibilidade de sair ileso a um percurso de mudança, e que existia ali algo permanente que dizia de um processo de elaboração mais demorado do que esperávamos. Todos nós fomos impactados pela sensação de descontinuidade que a imposição de uma adaptação nos colocava. O que era conhecido abriu espaço para a necessidade de se construir novos fluxos e uma dinâmica que pudesse funcionar minimamente. Os desafios que já eram imaginados e pensados anteriormente passaram a se tornar reais. Vimos uma expressiva perda de público, considerando o trajeto mais longo e de maiores custos à população, mas também, nos vimos frente a um novo território que também precisava do nosso cuidado. Frente a isto, nosso novo PAAS precisou repensar-se mais uma vez. Seguimos alguns meses, e o mês de maio toma conta de toda e qualquer urgência que poderíamos ter pensado ou previsto. O Estado do Rio Grande do Sul é então atingido pelas enchentes e junto com ela vemos uma corrente de solidariedade e uma nova reorganização a ser pensada. Alguns estagiários atingidos, muitos usuários direta e indiretamente sofrendo com suas perdas e de seus familiares, a Unisinos se torna abrigo de mais de mil pessoas e todos os cuidados do campus se voltam a acolher as pessoas atingidas. Mergulhados nas águas de maio, nos vimos reorganizando as prioridades, as rotinas, os limites, o cuidado; todos ansiosos na expectativa e no sopro de esperança de que tudo aquilo que estava acontecendo acabaria rapidamente. É como se a própria noção de tempo tivesse se modificado. As enchentes duraram quantos dias? Quantos meses? Questionar o término de fato dessa ca-
13 Cadernos do PAAS, volume 11 - A mudança como fenômeno no cuidado em saúde tástrofe é colocar em pauta as consequências que ainda repercutem nos dias de hoje e que ainda perduraram por indeterminado tempo. A retomada no serviço foi gradual, tanto dos integrantes da equipe, quanto dos pacientes. Vale destacar que a antiga sede da Unisinos foi afetada diretamente e, caso ainda tivéssemos permanecido nesse espaço, a retomada teria sido muito mais lenta e custosa, tanto emocionalmente, quanto física e materialmente. Já de volta a programação do PAAS que agora possuía uma cara nova e com ajustes necessários, já que retornar para uma rotina que antes era “normal” e cotidiana do serviço, não fazia mais sentido. Um novo contexto surgiu com todo o acontecimento do mês de maio, desde a ressignificação do barulho da chuva, que antes era música aos ouvidos e que se tornou um som que desperta medo e angústia, assim como a reconsiderar todo o semestre, revendo as próprias ações do serviço, como a atividade no território. Nos meses de julho e agosto fomos mais uma vez instigados pela mudança e por todo o processo: por fim chegou o momento de habitarmos o espaço que, de fato, foi projetado para o serviço. Lá vamos nós encaixar tudo novamente. Novas salas, novos corredores, sala de espelho, maior acessibilidade e proximidade dos demais projetos. Paredes ainda brancas que demonstram esse início, com espaço suficiente para colorirmos aos poucos, fazendo história, colecionando experiências, crescendo nos aprendizados. Foi nestas condições que este volume do Cadernos foi produzido. Falando sobre mudança e vivendo intensamente mudanças importantes de cotidiano, fluxos, modos de construir os encontros necessários, territórios, paredes e salas. Nossa localização mudou, acompanhada de acontecimentos que provocaram vertigens durante um período. Retomar a vida no PAAS, que nunca é a mesma, está ainda em curso, pois não se trata de somente adaptar-se, mas sim existe muito de inventar-se novamente. A equipe do Cadernos entendeu e acolheu a necessidade de incluir neste volume experiências com as enchentes e seus efeitos. Uma tragédia que mudou radicalmente os dias e as formas de cuidado em saúde. Assim como foi preciso ampliar prazos, permitir que os escreventes, autores deste volume pudessem retomar o fôlego, reconectar-se com o processo de escrita, reconstruir seus sentidos. Por isso, este volume está saindo um pouquinho mais tarde que o usual. Mas, por tudo isso aqui compartilhado, este volume 11 tem um lugar histórico importante e é
14 Cadernos do PAAS, volume 11 - A mudança como fenômeno no cuidado em saúde testemunho da resiliência e capacidade de superação que esteve e está muito presente na exigência do cotidiano neste pedaço de chão. Então leitor, fique com um Cadernos do PAAS que marca e registra a história. Nas suas páginas você encontrará poemas, relatos de experiências, vivências e encontros compartilhados a partir da generosidade dos seus autores. Iniciamos embalados pela poesia, para logo em seguida entrar em contato com textos que discutem a mudança como um fenômeno dentro e fora de um serviço escola. Novamente somos convidados a encontrar a poesia, para poder entrar com contato na sequência com escritas que buscam registrar, em um exercício que aparece muitas vezes como expressar o indizível, algumas das experiências vividas frente a calamidades que irromperam nas nossas vidas e nos exigiram sobrevivência. Em seguida, você encontrará textos que falam sobre experiências e temas inseridos em um serviço escola, nos processos de aprendizagem e cuidado. Por fim, encontrará uma entrevista com nossa colega Rosana Cecchini de Castro, convidada a compartilhar sobre sua trajetória, de como viveu o PAAS enquanto coordenadora, supervisora e fez da mudança uma força na instituição de um espaço tão rico de formação e cuidado em saúde. Finalizando esta apresentação, gostaríamos de agradecer aos autores, e novamente agradecer a parceria fundamental da Ação Social e os Cursos de Graduação da Psicologia, Enfermagem e Nutrição, sem os quais este volume não teria como ser produzido e editado. Desejamos uma ótima experiência de leitura. Novo tempo (Ivan Lins) (...) No novo tempo Apesar dos castigos Estamos em cena Estamos na rua Quebrando as algemas Pra nos socorrer (...) No novo tempo Apesar dos perigos A gente se encontra Cantando na praça Fazendo pirraça Pra sobreviver.
15 RIVERO, N. E. E. et al. A mudança como fenômeno no cuidado em saúde. São Leopoldo: Casa Leiria, 2024. (Série Cadernos do PAAS, 11) Vento Luciane Slomka1 A dança muda bagunça corpos A dor dança entre o corpo que escuta e o que teima em gritar Dançar já não basta é preciso sentir Saber é verbo para poucos Os ventos mudam o curso de um pensar de quem abre as velas 1 Psicanalista pelo CEPdePA, professora do curso de Psicologia Unisinos
17 RIVERO, N. E. E. et al. A mudança como fenômeno no cuidado em saúde. São Leopoldo: Casa Leiria, 2024. (Série Cadernos do PAAS, 11) O serviço-escola e o estágio em Psicologia: processos de mudança inerentes ao funcionamento e à formação profissional Bruna Scheffel1 Dâmaris Sant Anna2 Eduarda Nardi3 Francieli de Azevedo Souza4 Isadora Guindolin D’arriaga5 Lorrani Staudt Silveira6 Priscila Razera Kuhn7 Tagma Marina Schneider Donelli8 Resumo: Esta escrita coletiva tem como objetivo explorar as mudanças inerentes ao funcionamento de um serviço-escola, especialmente aquelas relacionadas à mudança de psicopsicoterapeuta em processos 1 Acadêmica do Curso de Psicologia da Unisinos e Estagiária de Psicologia no Programa de Atenção Ampliada à Saúde (PAAS/Unisinos). 2 Acadêmica do Curso de Psicologia da Unisinos e Estagiária de Psicologia no Programa de Atenção Ampliada à Saúde (PAAS/Unisinos). 3 Acadêmica do Curso de Psicologia da Unisinos e Estagiária de Psicologia no Programa de Atenção Ampliada à Saúde (PAAS/Unisinos). 4 Acadêmica do Curso de Psicologia da Unisinos e Estagiária de Psicologia no Programa de Atenção Ampliada à Saúde (PAAS/Unisinos). 5 Acadêmica do Curso de Psicologia da Unisinos e Estagiária de Psicologia no Programa de Atenção Ampliada à Saúde (PAAS/Unisinos). 6 Acadêmica do Curso de Psicologia da Unisinos e Estagiária de Psicologia no Programa de Atenção Ampliada à Saúde (PAAS/Unisinos). 7 Acadêmica do Curso de Psicologia da Unisinos e Estagiária de Psicologia no Programa de Atenção Ampliada à Saúde (PAAS/Unisinos). 8 Psicóloga; Doutora em Psicologia (UFRGS); Coordenadora do Curso de Psicologia da Unisinos; Docente do Curso de Psicologia da Unisinos; Supervisora local no Programa de Atenção Ampliada à Saúde (PAAS/Unisinos). DOI: https://doi.org/10.29327/5457497.1-2
18 Cadernos do PAAS, volume 11 - A mudança como fenômeno no cuidado em saúde de tratamento. Considerando as características do funcionamento de um serviço-escola de psicologia, como a rotatividade de estagiários e de pacientes, este texto enfocou, além da mudança de psicopsicoterapeuta na psicoterapia, as inquietudes emergidas com o acolhimento de um novo paciente, as angústias afloradas com o recebimento de um paciente vindo de outro psicoterapeuta e as ambivalências experimentadas a partir de desistências ou abandonos de pacientes. Tais desdobramentos dão destaque à mudança como um fenômeno no cuidado em saúde e como forma de ampliação no modo de fazer clínica, aqueles que fazem o estudante de psicologia sair do campo teórico e se encontrar com a prática profissional. Palavras-chave: Estágio em psicologia; processos de mudança; serviço-escola. Introdução A mudança é uma parte inevitável da vida: viver traz transformações em todas as áreas e em múltiplas direções. Muitas vezes, essas mudanças são inesperadas e nos pegam de surpresa. Segundo Morin (2000, p. 16), “É preciso aprender a navegar em um oceano de incertezas em meio a arquipélagos de certeza”. Embora a mudança possa nos desacomodar, é justamente nesse desconforto que frequentemente encontramos oportunidades valiosas para crescer, evoluir e fazer descobertas significativas. Como já dizia Raul Seixas: “Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante” (Seixas, 1973), refletindo a ideia de que é melhor estar em constante transformação do que ser rígido e inflexível em nossas crenças e opiniões. Estar aberto a mudanças nos permite vivenciar novas experiências, acolher novas ideias e repensar nossas formas de ver o mundo, enxergar as coisas e as pessoas, em vez de ficarmos presos em uma verdade única e estática. No contexto de um serviço-escola, as mudanças também são constantes: a entrada e saída de psicólogos/as em formação no cumprimento de seus estágios, a chegada e partida de pacientes, além das adaptações inerentes aos serviços oferecidos. Não há como evitar essas mudanças, pois elas são essenciais para o crescimento e a evolução contínua tanto dos profissionais quanto dos pacientes e de toda a equipe técnica envolvida. No entanto, cabe aqui alguns questionamentos cru-
19 Cadernos do PAAS, volume 11 - A mudança como fenômeno no cuidado em saúde ciais: Como essas mudanças ocorrem? Que impacto essas mudanças têm sobre o psicopsicoterapeuta e sobre os processos de tratamento? Contextualizando, o Programa de Atenção Ampliada à Saúde (PAAS) é o serviço-escola da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), que existe desde a década de 1990. No início das suas atividades, localizava-se no centro de São Leopoldo, na antiga sede da universidade, junto dos demais serviços do Centro de Cidadania e Ação Social (CCIAS). Desde março de 2024, o PAAS situa-se dentro do campus e essa mudança de território e espaço físico é mais um processo de mudança que tem reverberado em todos os cantos e corações que por ele são tocados. Agora, inserido dentro do campus e imerso em possibilidades que se estendem diante desse novo contexto, o serviço segue se reinventando para que suas práticas sigam em constante desenvolvimento e reestruturação para oportunizar diferentes experiências para seus estagiários, bem como para melhor acolher o público atendido (Castro; Rivero, 2016). O PAAS possui uma história muito rica, cheia de transformações e de renascimentos, os quais inspiraram este grupo de autoras a refletir sobre as mudanças que vivenciamos ao longo da nossa jornada de estágio. A abertura para o questionamento, para a mudança e para a reinvenção nos interessam e nos desafiam desde as nossas primeiras inserções na prática clínica, sendo objeto de atenção no nosso processo formativo. Aqui nos referimos a experimentarmos modos de construir e exercer uma clínica que nos desafia não somente no conhecimento e na teoria, mas na autonomia e na iniciativa, um lugar de construção e criação que nos provoca tensionamentos a respeito do tipo de clínica e atendimento que queremos apostar. Assim, pretendemos através da presente construção coletiva explorar as mudanças inerentes ao funcionamento de um serviço-escola, com foco particular na mudança como fenômeno no cuidado em saúde, especialmente aquelas relacionadas à mudança dos psicoterapeutas nos processos de tratamento de usuários. A Psicologia no serviço-escola O PAAS promove práticas interdisciplinares de saúde nas áreas de psicologia, enfermagem e nutrição para a população em situação de vulnerabilidade social no município de São Leopoldo (Castro; Ruschel; Rivero, 2015). O serviço atende a comunidade de forma a contemplar
20 Cadernos do PAAS, volume 11 - A mudança como fenômeno no cuidado em saúde todas as faixas etárias, e as suas ações são pensadas justamente para poder acolher as diferentes populações, atendendo, assim, crianças, pré-adolescentes, adolescentes, adultos e idosos, em formatos tanto individuais quanto grupais. Dentre tais ações, algumas atividades desenvolvidas no serviço são de acolhimento, grupos psicoterapêuticos, oficinas, avaliações psicológicas e atendimentos individuais. Além disso, tendo em vista o público atendido, o serviço preza por estar sempre em contato e consonância com a rede de saúde, assistência e educação do município, inclusive com os outros serviços e projetos sociais da universidade, como o Programa de Educação e Ação Social (EDUCAS), o Projeto Vida com Arte e o Projeto Eu-Cidadão, todos, assim como o PAAS, parte do Centro de Cidadania e Ação Social (CCIAS). Em termos do funcionamento, após o usuário ter suas demandas compartilhadas e discutidas pelos estagiários e equipe técnica na ação do Acolhimento Permanente, na perspectiva de avaliar a possibilidade de se beneficiar das práticas desenvolvidas no serviço, ele é encaminhado para atendimento em uma ou mais ações dentre as supracitadas. São nessas ações que os estagiários, supervisionados pelos supervisores locais, se inserem, sendo eles a força motriz do local, já que são os responsáveis por atuarem diretamente com o público atendido. Nesse sentido, a proposta do serviço é a de ser campo de pesquisa e de aprendizagem para os alunos, ao mesmo tempo que oferta cuidado em saúde para a população (Bressan; Arnhold; Ruschel, 2016), ou seja, por tratar-se de um serviço-escola, opera pela via do encontro e da união entre o desenvolvimento dos alunos e da produção de conhecimento com a promoção de saúde dos usuários. A psicologia ocupa um lugar de destaque dentro do PAAS, já que possui um maior número de estagiários, o que impacta sua presença e atuação nas diversas ações do serviço. A modalidade de atendimento mais procurada pelos usuários, e que provoca um grande envolvimento por parte dos estagiários, é a dos atendimentos individuais em psicoterapia, que podem ser orientados pelas abordagens cognitivo- -comportamental, institucional ou pela psicanálise. Comumente, esses atendimentos têm frequência semanal, com duração de 45 minutos, sendo os estagiários sempre supervisionados semanalmente em formato coletivo. Além disso, e considerando que o estágio profissional dos alunos da universidade tem a duração de três semestres, se um paciente é recebido logo no início do estágio, esse permanece com o psicopsi-
21 Cadernos do PAAS, volume 11 - A mudança como fenômeno no cuidado em saúde coterapeuta durante todo esse período e, após, recebe alta ou é encaminhado para um novo estagiário. Tais pacientes que são encaminhados de um psicopsicoterapeuta para o outro são chamados de “pacientes de passagem” e, junto deles, podem aparecer diferentes afetos. A experiência da mudança na prática do cuidado em saúde Ao integrar um serviço escola, tratando-se aqui do Programa de Atenção Ampliada à Saúde (PAAS), da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), experimentações se tornam possíveis ao estagiário de Psicologia, principalmente no que se refere à integração entre a teoria e a prática. A nossa se deu a partir do estágio profissional em psicologia, em que a possibilidade de realizarmos atendimentos individuais concomitantemente a supervisões de casos clínicos, com a escrita de atendimentos dialogados e a realização de seminários teóricos, nos aproximou de processos voltados ao aprendizado e à vivência psi na dimensão de um campo de formação, fomentando reflexões e movimentos de mudança no modo de exercer a prática. A partir dos movimentos históricos e significativos ocorridos no serviço-escola em 2024, nos colocamos, enquanto grupo, a perspectivar o fenômeno da mudança dentro dos processos que vivenciamos durante o período de estágio. Dentre eles, as relações com os pacientes se mostram como um dos grandes mobilizadores no espaço de supervisão dentro da abordagem psicanalítica. Além da escuta em livre associação, o manejo e a interpretação da transferência e da contratransferência são as ferramentas utilizadas para orientarmos o nosso trabalho. Colocar-se enquanto psicopsicoterapeuta é um dos momentos mais desejados pelos estudantes de Psicologia, mas também pode ser visto como um lugar repleto de inseguranças. O início do fazer clínico movimenta em nós grandes dúvidas quanto ao que aprendemos até então na graduação e do que somos capazes, uma vez que a psicoterapia, dentro de um serviço-escola, não funciona apenas como uma oferta de serviço aos pacientes, mas é também o local de aprendizagem destes psicoterapeutas. Diante do anseio por essa experiência nova que está inscrita no currículo dos estudantes, pode surgir a vontade de não querer errar, ou seja, a ambição de acertar todas as intervenções e interpretações mesmo estando no início de uma prática nunca realizada antes. Por vezes, o aprendiz-psicoterapeuta concentra-se apenas nesse fragmento do processo e acaba por demonstrar ao paciente uma postura de distanciamento, de rigidez e de excessiva formalidade, temendo
22 Cadernos do PAAS, volume 11 - A mudança como fenômeno no cuidado em saúde que aspectos da própria naturalidade humana e espontaneidade possam fazer parte do setting (Gabbard, 2005). Iniciar um processo psicoterapêutico provoca sempre uma nova ansiedade, um novo encontro que pode proporcionar diversas situações. Se colocar frente a frente com um desconhecido pela primeira vez gera anseios em ambas as partes. E quando esse desconhecido não é assim tão desconhecido? Nos encontrarmos com um paciente de passagem pode ser tão ansiogênico como receber um novo paciente. Neste caso, não vamos como uma tela em branco, pronta para ser decorada pelo que o paciente tem a nos dizer. Geralmente, já conhecemos este usuário a partir da escuta dos colegas-psicoterapeutas em espaço de supervisão, que semana a semana compartilham conosco a experiência de escutar estes sujeitos. A partir disso, nos encontramos com o paciente com um olhar já marcado pelos esboços que o colega nos pintou. O que pode facilitar ou atrapalhar a nova relação que está por vir. Em uma das experiências por nós vividas está a de acompanhar uma das colegas, que estava em seu último semestre no serviço, narrar seus encontros com a paciente pré-adolescente que ela atendia. Encontros quase sempre narrados como muito mobilizadores para a psicoterapeuta, pelos conteúdos trazidos pela paciente através das expressões artísticas, uma vez que a verbalização se mostrava como uma via pouco utilizada por ela. Nestes relatos e partilhamentos dos desenhos, o nosso grupo também se mobilizava, envolvido pelos sentimentos expressos pela colega, a partir da presença na sessão, e pela paciente, através da arte. Este caso mostrou que a configuração da transferência entre paciente-psicoterapeuta pode ser tão potente, que, ao se aproximar o período da passagem, paciente e psicoterapeuta sintam-se afetados pela despedida, como aconteceu neste caso, no qual a paciente pode demonstrar sua fragilidade frente à despedida e a psicoterapeuta, em supervisão, manifestou também os mesmos sentimentos. Ao ser realizada a passagem, a paciente pré-adolescente convoca as duas psicoterapeutas a participarem de um jogo de cartas, no qual somente ela ditava as regras. Quando a nova psicoterapeuta parecia ter vantagem quanto às regras já estipuladas, a paciente apresentava uma nova regra, fazendo com que a nova psicoterapeuta ficasse novamente em desvantagem. Infelizmente, este foi um caso em que os desdobramentos desta despedida e deste novo encontro pouco puderam ser trabalhados, tendo esta passagem também sido afetada pela mudança de espaço físico do
23 Cadernos do PAAS, volume 11 - A mudança como fenômeno no cuidado em saúde serviço, além da mudança de psicoterapeuta, o que resultou no abandono do tratamento. São nestes relatos que a dificuldade da “passagem” se faz presente. Como dar continuidade a um trabalho tão marcante na vida do paciente e, também, do psicoterapeuta? Aos poucos, vamos questionando juntas em supervisão, formas de trabalhar em nós e com os pacientes a continuidade do cuidado. Por vezes, também nos deparamos com nossa própria posição de recém-chegados, na qual o paciente conhece melhor o serviço do que os novos estagiários. Estamos em um local novo com um paciente que está familiarizado com o consultório, com o funcionamento do serviço e do setting, com os brinquedos, com a recepção. Assim, tem-se o desafio de construir um vínculo a partir das experiências vividas pelo paciente com seu estagiário anterior e com as relações previamente estabelecidas com o local. Surge, então, a necessidade de olhar e pensar sobre o que já foi feito, conversado e trabalhado com o paciente, atrelada às novas possibilidades que aparecem no setting modificado pelo novo estudante de psicologia. Isso porque cada um possui suas singularidades e esse novo encontro, nunca antes experimentado, impactará o setting a partir da nova transferência, da contratransferência, da comunicação e do vínculo que precisará ser construído. Da mesma forma que o estagiário se prepara para receber o paciente, considerando toda sua história, espera-se que o paciente esteja aberto para essa nova relação de confiança que será estabelecida. É o trabalho de uma dupla. Portanto, a “passagem” de um paciente e os desdobramentos a partir disso são complexos e sensíveis às mudanças que ocorrerão entre a relação psicoterapeuta-paciente, o setting criado e o vínculo estabelecido. Há também as vezes em que os esforços não são suficientes para manter um paciente em vínculo com o serviço e implicado no seu processo terapêutico. Nesse momento, e considerando a mudança de sede do PAAS, pode-se pensar no abandono como um reflexo dessa mudança. Muitos pacientes acessavam o serviço sem nenhum custo, por viverem no mesmo bairro ou em bairros ao redor do centro da cidade. A partir da mudança, muitos deles se viram com muita dificuldade, ou impossibilitados de chegarem até o campus da Unisinos, abandonando então o acompanhamento psicoterapêutico. Outro fator presente nas “desistências” está relacionado com pacientes menores de idade, que dependem de uma certa decisão por parte dos responsáveis em rela-
24 Cadernos do PAAS, volume 11 - A mudança como fenômeno no cuidado em saúde ção ao tratamento, o que muitas vezes acaba afastando os pacientes do serviço por dificuldades de deslocamento, problemas com horário, ou sejam quais forem as questões apresentadas pelos responsáveis. São situações como essas que acabam por deixar muitos dos psicoterapeutas iniciantes comovidos com o abandono dos pacientes, podendo surgir dúvidas em relação aos reais motivos da perda destes, como também em relação ao próprio desempenho na experiência de estágio. Ainda que possamos nos sentir abandonados por nossos pacientes e tudo que envolva sua desistência, sabemos que, em algum momento, quem irá precisar se despedir somos nós, os psicopsicoterapeutas em formação. Ao finalizar nossa prática no serviço escola, estudamos caso a caso para avaliar a possibilidade de alta ou passagem para outro psicopsicoterapeuta. Buscar por um colega que possa aproximar-se com nossa forma de trabalhar, tenha semelhanças de trejeitos, suas implicações e principalmente seu desejo em dar continuidade aos atendimentos. Em concordância com Bion (1971), durante os atendimentos o psicoterapeuta utiliza da função continente proposta pelo autor. Esta condição consiste em aceitar, suportar e sobreviver às projeções do paciente que penetram em nós, como uma figura materna que sustenta essa posição. Assumindo a carga energética do paciente e dando destino a essas projeções, dando contorno à narrativa do paciente, mantendo-se vivo aos ataques e marcando nossa presença, com uma postura de continuidade na vida do paciente. Ao realizar a passagem, buscamos por um colega que possa prover cuidados e afetos a partir da nova dupla que se forma, onde o encontro com o novo possa ser capaz de produzir novas experiências para ambos durante sua caminhada. É interessante pensar em como essas relações são capazes de promover amadurecimento mútuo e de como a despedida pode se tornar dolorida e desafiadora, afinal, durante um processo psicoterapêutico, nos encontramos com um tipo de intimidade completamente diversa daquelas que estamos acostumados a vivenciar com nossos pares. Funcionamos como uma unidade, e só funcionamos porque nos encontramos com a falta, com o desejo de ser desejado, com o que pensamos ser desconhecido, e assim, como uma dança coreografada, vamos chegando ao final e nos despedindo do palco onde, uma vez, suamos e dançamos juntos. Reverenciamos o processo, seja como ele tenha sido, e ali, dizemos um até logo e abrindo-se para a nova história que será construída.
25 Cadernos do PAAS, volume 11 - A mudança como fenômeno no cuidado em saúde Desde que começamos o estágio, observamos colegas se despedindo de seus pacientes, algo que presenciamos por dois semestres. No entanto, ainda não tínhamos compreendido plenamente o significado desse momento. Para Dunker, o sofrimento não se apresenta de maneira fixa ou previsível. Ele é algo fluido e difícil de ser explicado de forma precisa, já que sua natureza é complexa e se manifesta de maneiras variadas. Nesse sentido diz: “O sofrimento, por sua vez, pode ser agora mais bem concebido como excesso de indeterminação metonímica [...].” (Dunker, 2015, p. 132). Em uma tarde, enquanto chegávamos ao serviço, nos deparamos com uma colega chorando no corredor. Ela era nossa companheira de estágio, sempre presente no nosso dia a dia. Ao vê-la, uma das estagiárias acelerou o passo naquele corredor longo e foi em sua direção. – Está tudo bem? Posso te ajudar em algo? – perguntou ela. Por alguns instantes, ela não conseguiu responder. Esperamos, segurando seus braços com firmeza, enquanto permanecia de frente para ela. Então uma das colegas a abraçou. Ela chorou em silêncio por um tempo, e apenas ficamos ali, sem imaginar o que poderia estar acontecendo. Após alguns minutos, ela conseguiu sussurrar: – Me despedi da minha paciente. A nossa colega havia acabado de vivenciar o momento de passagem. Dentro de uma sala próxima, ela tinha recebido sua paciente – uma criança –, feito o atendimento, e nos minutos finais, a nova psicoterapeuta entrou para brincar e jogar com ela, iniciando o rito de transição. Por que estamos contando essa história? Porque, neste momento, nos damos conta de que estamos prestes a viver novas mudanças, encontros e despedidas, atestando mais uma vez que os processos de mudança são, de certa forma, a única constante no nosso processo de formação como psicólogas. Entre o anúncio ao paciente e o momento da despedida, é fundamental lembrarmos que, apesar dos sentimentos e desejos pessoais que possam surgir, ainda ocupamos a posição de psicopsicoterapeutas. Nossos desejos, interesses ou vontades não podem ditar nossas ações no setting. Embora esses sentimentos existam e sejam latentes, devemos dar lugar ao desejo do analista, que se sobrepõe ao desejo pessoal e direciona o foco para o plano principal, que é o processo terapêutico do paciente. Como bem sugerem Scheffel et al. (2023): “É preciso que atuemos e encaremos as nossas práticas não a partir do nosso desejo
26 Cadernos do PAAS, volume 11 - A mudança como fenômeno no cuidado em saúde enquanto sujeitos, mas pela motriz do desejo do analista, que deseja somente a própria análise, e não uma permanência esvaziada desses pacientes” (Scheffel et al., 2023, p. 46). Sabemos, desde o início, que o estágio tem um tempo limitado e, quando começamos, mal podemos esperar para concluí-lo. No nosso imaginário, carregamos a ideia de que o estágio curricular profissional é simplesmente “uma atividade acadêmica obrigatória única, que possibilita ao aluno ocupar um espaço de experimentação escolhido por ele, ao longo de três semestres letivos consecutivos, em geral os três últimos semestres do curso [...]” (Scheffel et al., 2023, p. 36). Contudo, ao longo do processo, somos atravessados pela relação paciente-psicoterapeuta, uma conexão que vai além das simples atividades acadêmicas e toca a essência do processo terapêutico. Despedir-nos de nossos pacientes, portanto, não é tão simples quanto imaginamos no começo. No entanto, esse momento chega, e é necessário lidar com essa transição no processo terapêutico. Isso faz parte do processo. Considerações finais Assim sendo, tomamos por mudanças os acontecimentos que são inerentes à vida e que provocam, a partir desse fenômeno, sentimentos, sensações e afetos variados, com diferentes intensidades. Mudanças trazem consigo o desconforto e a incerteza para o que já está instituído, tende a desacomodar, mas propõe a invenção de novas possibilidades e novos encontros. Desse modo, o Programa de Atenção Ampliada à Saúde (PAAS) nessa escrita coletiva, revela em suas particularidades propriedades inerentes de mudanças, visto na rotatividade de estagiários e entradas e saídas de pacientes, somadas à mudança de sede no corrente ano de 2024. A se destacar, pontua-se a experiência vivida por nós estagiárias de psicologia ao enfrentar transições de psicoterapeutas em processos de tratamento individual. O fazer na clínica de um serviço escola, enquanto um lugar possível para o estagiário ocupar, transita entre o singular e o coletivo e vai nos desafiando em novos arranjos decisivos para compor a nossa prática intrínseca à mudança, na forma de acolhermos e oferecermos atendimentos individuais em psicoterapia. Assim, todos esses desdobramentos permeiam as ações desenvolvidas no serviço escola, no que
27 Cadernos do PAAS, volume 11 - A mudança como fenômeno no cuidado em saúde compete a fazer dele, além de um espaço de experiência e aprendizagem profissional para o estagiário, uma instituição que acolha e atenda as demandas da comunidade de usuários que acessa seus serviços. Ao pensarmos através da perspectiva dos atravessamentos que ocorrem a partir dos encerramentos dos atendimentos, podemos refletir sobre a anunciação inconsciente de um término previsto. Os estagiários já iniciam seu estágio sabendo que, em três semestres, deixarão este local, e muitos pacientes, vindos de passagens, já experienciaram esta despedida. Sendo assim, psicoterapeuta e paciente podem não falar sobre o encerramento do atendimento, mas, em algum lugar do seu psiquismo, existe essa informação. Situação que pode gerar angústia, e, que em muitas vezes, ocasiona diversos sentimentos na dupla disposta. No entanto, nosso intuito não é colocarmos a pensar sobre estes atravessamentos junto aos pacientes, uma vez que muitos deles não tem essa informação e, justamente, para não levantar todas as angústias e possíveis resistências que possam surgir a partir desta nuvem que cerca o setting. Expor isto ao paciente no início dos seus atendimentos, é impor uma barreira na construção do vínculo: como confiar em alguém que eu sei que vai me abandonar? Fantasias que podem vir a atrapalhar a potencialidade que o encontro oferece. Estas reflexões pertencem ao jovem psicoterapeuta, que em seu espaço de supervisão, possa desafogar seus receios e anseios quanto a este tópico tão presente na vida do estagiário, para compreender e melhor trabalhar junto ao seu paciente quando este momento chegar. A presente escrita discorreu sobre as inquietudes emergidas com o recebimento de um novo paciente, as angústias afloradas com a passagem vindo de outro psicoterapeuta e com as ambivalências emergidas a partir de desistências ou abandonos de pacientes. Para além do manejo prático dessas situações descritas, o estagiário se depara com seus próprios afetos diante dessas experiências, se havendo com dúvidas sobre sua competência e que tendem a se desdobrar também na dupla terapêutica e no setting. Por fim, Bondía (2002, p. 21) escreve que “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca” e que, sendo assim, a experiência carrega consigo a capacidade de transformação do sujeito. Dar abertura às mudanças e estar sensível para as nuances que emergem a partir desse acontecimento é deixar ser afetado em prol da transformação e formação do sujeito.
28 Cadernos do PAAS, volume 11 - A mudança como fenômeno no cuidado em saúde REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. BION, Wilfred R. 1971 [1962]. O Aprender com a Experiência. Rio de Janeiro: Imago. 2003. BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, Campinas, n. 19, p. 20-28, 2002. BRESSAN, Sarah Falena Donatti; ARNHOLD, Patrícia; RUSCHEL, Letícia Fialho. O que posso fazer hoje? A construção de um lugar para o profissional da saúde em um serviço escola. In: CASTRO, Rosana Cecchini de; RIVERO, Nelson Eduardo Estamado (org.). Projeto de Atenção Ampliada à Saúde PAAS: 20 anos de desafios e possibilidades. São Leopoldo: Casa Leiria, 2016. (Série Cadernos do PAAS, 3). p. 27-36. CASTRO, Rosana Cecchini de; Rivero, RIVERO, Nelson Estamado. Projeto de Atenção Ampliada à Saúde – PAAS: 20 anos de multiplicidades e diferenças. In: CASTRO, Rosana Cecchini de; RIVERO, Nelson Eduardo Estamado (org.). Projeto de Atenção Ampliada à Saúde PAAS: 20 anos de desafios e possibilidades. São Leopoldo: Casa Leiria, 2016. (Série Cadernos do PAAS, 3). p. 14-26. CASTRO, Rosana Cecchini de; RUSCHEL, Letícia Fialho; RIVERO, Nelson Estamado. Projeto de Atenção Ampliada à Saúde – PAAS: uma breve apresentação. In: CASTRO, Rosana Cecchini de; RUSCHEL, Letícia Fialho; RIVERO, Nelson Estamado. Os desafios da prática interdisciplinar em um serviço escola. São Leopoldo: Casa Leiria, 2015. (Série Cadernos do PAAS, 1). p. 11-17. DUNKER, Christian. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015. GABBARD, G. O. Psicoterapia psicodinâmica de longo prazo. Porto Alegre: Artmed, 2004.
29 Cadernos do PAAS, volume 11 - A mudança como fenômeno no cuidado em saúde MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Tradução de Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2011. Disponível em: https://edis ciplinas.usp.br/pluginfile.php/4036622/mod_resource/con tent/2/Morin_sete%20saberes.pdf. Acesso em: 14 ago. 2024. SCHEFFEL, Bruna Oliveira et al. Freud explica? O que a supervisão em psicanálise faz na Clínica Ampliada do PAAS? Permanências e desistências, o que o inconsciente tem para nos dizer? In: RIVERO, Nelson Eduardo Estamado et al. Clínica ampliada: qualificando a produção em saúde. São Leopoldo: Casa Leiria, 2023. (Série Cadernos do PAAS, 10). p. 33-52. SEIXAS, Raul. Metamorfose Ambulante. In: SEIXAS, Raul. Krig-Ha, Bandolo! Philips, 1973. Disponível em: https://www.letras.mus. br/raul-seixas/48317/. Acesso em: 14 ago. 2024.
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